Em entrevista gravada com exclusividade para o Papo de Mãe, Maria da Penha faz um apelo ao STF no dia do seu aniversário
Mariana Kotscho* Publicado em 01/02/2021, às 00h00 - Atualizado às 15h22
Conheci Maria da Penha, a mulher que dá nome à Lei que protege as mulheres, e sua história, em 1999, quando morei no Ceará, como repórter da Rede Globo. De lá pra cá, sempre mantivemos contato e virei sua discípula na luta contra a violência doméstica no nosso país.
Neste seu aniversário, Maria da Penha, te desejo muitas felicidades e muitos mais anos de vida e de luta. As mulheres do Brasil precisam de você.
De Fortaleza, no Ceará, onde mora, Maria da Penha deu uma entrevista exclusiva ao Papo de Mãe e falou sobre a carta que entrega hoje aos ministros do STF pedindo providências no combate à violência contra as mulheres no Brasil.
Para Maria da Penha, não há muito o que comemorar e ela cobra ações do Supremo Tribunal Federal.
O Brasil fica em quinto lugar no ranking dos países que mais matam mulheres. E, em geral, elas são assassinadas por maridos, namorados, companheiros ou ex que não aceitam o fim do relacionamento. “Me sinto chateada e preocupada com a situação das mulheres no meu país. A principal finalidade da Lei Maria da Penha não é punir homens, é proteger as mulheres e punir o homem agressor”, desabafa Maria da Penha.
Ela lembra com tristeza o caso da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, assassinada pelo ex-marido a facadas na véspera do Natal na frente das 3 filhas. Assim como Viviane, Maria da Penha também tem 3 filhas e quase as deixou órfãs em 1983 quando levou um tiro do então marido. Ela não morreu, mas se tornou cadeirante e começou a lutar por justiça para ela e todas as vítimas de violência doméstica no país.
Maria da Penha também ressalta a importância da aplicabilidade correta da Lei Maria da Penha, que deve ser híbrida e não pode ser ignorada em audiências da Vara de Família, como fez o juiz Rodrigo de Azevedo Costa, conforme denunciou o Papo de Mãe em dezembro.
Importante lembrar que a Lei Maria da Penha é considerada uma das melhores do mundo para proteger mulheres. E Maria da Penha preside o Instituto Maria da Penha, que faz também um trabalho de prevenção e educação, inclusive com crianças. Apesar de tudo, ela diz que ainda tem esperança de ver esta realidade mudar no país.
O maior presente de Maria da Penha no dia do seu aniversário seria ter respostas para as perguntas que coloca na carta. (Veja carta abaixo).
Primeiro de fevereiro é sempre uma data especial para mim, é o dia do meu aniversário. Este ano completo 76 anos de vida, uma vida, como todos sabem, cheia de dias difíceis com muito sofrimento, mas também de muitas alegrias. Sou de um outro século e também de um outro milênio. Nasci em 1945, ano em que terminou a Segunda Grande Guerra Mundial, embalando nossas esperanças de um mundo de paz e de superação. O fim da guerra demarcou o início de um grande pacto e o desfecho de um tempo esgotado das dores e dos sofrimentos e materializou, em 1948, o que é para mim um dos mais importantes documentos de nossa história atual: a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Talvez, de lá para cá, nunca antes um documento contendo simplesmente um conjunto de dispositivos e assertivas, se mostrou tão importante. Contrariando a ideia de que a grandeza do que podemos realizar está em monumentos de pedra erigidos por anos de trabalho, a Declaração Universal dos Direitos Humanos consolidou o que é talvez uma das ações mais significativas que foi possível realizar: a superação das desigualdades, da indiferença e dos preconceitos que nutrem a crise entre homens e mulheres.
Sob a batuta de Bertha Lutz, uma das nossas mais ilustres feministas, demos ali um importante passo, de uma ainda talvez longa caminhada, cujo objetivo é a superação de muitas formas de violência e da bestialidade humana que insistimos em nutrir entre nós. A fé nos direitos fundamentais do ser humano, na dignidade, no valor da pessoa humana, no desejo de liberdade e paz e na igualdade de direitos do homem e da mulher com vistas à promoção do progresso social e melhores condições de vida, é certamente um marco que devemos celebrar.
No entanto, sabemos que as leis, os dispositivos e mesmo as assertivas colocadas em papéis, precisam tomar corpo. Sem o seu exercício efetivo, sem nos comprometermos em seguir o que por diversos modos mostrou sua altura e nobreza, somos fadados à repetição e ao círculo vicioso do sofrimento. E como todos também sabemos, talvez aí se encontre nossa maior dificuldade.
Minha história é um pouco a mistura dessa contradição. Passados 38 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 29 de maio de 1983, mesmo diante de todas as conquistas civilizatórias que falavam de um mundo mais justo, eu sofri o que ninguém mais deveria sofrer, ou seja, a violência mortal por meu próprio marido, na época, na forma de múltiplas agressões duas tentativas de assassinato.
Desde o acontecido, que insisto em lembrar para que outras não sofram o que sofri, lutei em defesa da minha dignidade, da minha honra e do meu valor enquanto pessoa humana. Por 19 anos e seis meses. Dos 38 anos de idade, nos idos de 1983 quando sofri a tentativa de assassinato, até a resposta da justiça brasileira ao caso, foram exatos 19 anos e 6 meses de luta. Eu já estava com 57 anos de idade quando o meu agressor foi preso.
Por livramento de Deus, seu ódio não teve pleno sucesso, embora tenha me deixado marcas físicas que jamais poderei superar. As dores mais profundas na minha psique não se apagaram e só foram superadas porque sobrevivi, graças a Deus, o que me permitiu ter uma segunda chance – mesmo com muitas limitações. Assim, foi possível acompanhar o desenvolvimento das minhas filhas, participado das suas muitas alegrias e por estar usufruindo do crescimento e desenvolvimento das minhas 3 netas e 3 netos.
Na minha história, a dor se transformou em luta e o pesadelo vivido se transformou no sonho de poder, de certo modo, contribuir para que se possa superar o escândalo dessa covardia insistente em nossa sociedade. Sou apenas uma de tantas outras, sou uma sobrevivente entre milhares que não tiveram a mesma sorte. Por algum acaso do destino, consegui escapar das estatísticas que falam de um Brasil mortal, que a cada minuto ceifa a vida de mulheres como eu, pelo simples fato de não desejarem mais manter uma relação ou pelo simples fato de serem mulheres. A Lei que carrega meu nome, como os dispositivos presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos, é uma conquista, mas ela não pode ficar só no papel.
Este ano, a Lei Maria da Penha completa 15 anos. No entanto, os casos da adolescente Eloá (assassinada pelo ex-namorado em 2008), da atriz e modelo Eliza Samúdio (assassinada pelo jogador Bruno, em 2010), da advogada Mércia Nakashima (assassinada pelo namorado, em 2010), da cabeleireira Maria Islaine (assassinada pelo ex-marido, com 9 tiros diante das câmeras do salão onde trabalhava – mesmo com oito boletins de ocorrência e medida protetiva, em 2010) e da procuradora federal Ana Alice Moreira de Melo (assassinada pelo marido, em 2012), mostram que a lei, sem sua efetiva execução, nada é, nada significa e nada diz. Uma lei elaborada por pessoas como nós precisa de mecanismos eficientes para sua real existência. Ou seja, a lei depende do nosso compromisso, do nosso trabalho, do nosso efetivo envolvimento com ela e da aceitação de tudo o que ela representa. Se a lei por si só não é garantia, é porque ela precisa de cada um de nós, do trabalho efetivo e do compromisso daqueles que ainda têm lucidez e discernimento.
Esses tristes e terríveis episódios, infelizmente, continuam a acontecer após 8 anos da reconhecida constitucionalidade da Lei Maria da Penha.
A morte da Juíza Viviane é emblemática, Excelentíssimo Ministro Luiz Fux. Ela mostra que nenhuma de nós está segura, que nenhuma de nós mulheres ricas, pobres, brancas, pretas , indígenas, crianças, adolescentes ou idosas está segura. Não temos segurança em nosso país.
Nossa casa, nosso lar, nossa nação não é um lugar seguro para nós mulheres. E não se trata aqui apenas de uma questão relacionada a questões econômicas, mas ao fato de que nos corrói na base a precariedade humana, um ávido desejo de morte e um modo cultural perverso que coloca a mulher como um objeto, como um algo a ser usado e jogado fora quando for conveniente, ou eliminado, quando for para o homem necessário.
Ao lhes dirigir a palavra, estou incluindo todo o sistema judiciário brasileiro pedindo que lutem pelo fim da violência, principalmente pelo fim da violência contra as mulheres. Venho de mãos vazias, nada tenho a oferecer senão minha história, os meandros de quem pode contar o que muitas vivem em silêncio, mas diante de vocês ergo a minha voz e registro com a minha escrita a minha verdadeira petição como propósito desta mensagem: compromisso e um efetivo trabalho para erradicar esse mal que nos afronta geracionalmente.
Eu acredito nas leis, eu acredito na justiça, mas sei que precisamos fazer mais. Precisamos dar uma resposta mais contundente para enfrentar com mais estratégias, dinamismo, coragem e com mais eficiência, as políticas públicas de enfrentamento ao feminicídio, à violência, à importunação sexual e às muitas práticas de tolerância no próprio sistema judiciário que, de certo modo, também estimulam a violência praticada contra a mulher.
“Lamentamos mais essa morte e a de tantas outras mulheres que se tornam vítimas da violência doméstica, do ódio exacerbado e da desconsideração da vida humana. A morte da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, no último dia 24 de dezembro de 2020, demonstra o quão premente é o debate do tema e a adoção de ações conjuntas e articuladas para o êxito na mudança desse doloroso enredo. Pela magistrada Viviane Vieira do Amaral Arronenzi. Por suas filhas. Pelas mulheres e meninas do Brasil.”
Em 1983, Maria da Penha foi vítima de dupla tentativa de feminicídio por parte de Marco Antonio Heredia Viveros, seu então marido.
Primeiro, ele deu um tiro em suas costas enquanto ela dormia. Como resultado dessa agressão, Maria da Penha ficou paraplégica devido a lesões irreversíveis na terceira e quarta vértebras torácicas, laceração na dura-máter e destruição de um terço da medula à esquerda – constam-se ainda outras complicações físicas e traumas psicológicos.
No entanto, Marco Antonio declarou à polícia que tudo não havia passado de uma tentativa de assalto, versão que foi posteriormente desmentida pela perícia. Quatro meses depois, quando Maria da Penha voltou para casa – após duas cirurgias, internações e tratamentos –, ele a manteve em cárcere privado durante 15 dias e tentou eletrocutá-la durante o banho.
Juntando as peças de um quebra-cabeça perverso montado pelo agressor, Maria da Penha compreendeu os diversos movimentos feitos pelo ex-marido: ele insistiu para que a investigação sobre o suposto assalto não fosse levada adiante, fez com que ela assinasse uma procuração que o autorizava a agir em seu nome, inventou uma história trágica sobre a perda do automóvel do casal, tinha várias cópias de documentos autenticados de Maria da Penha e ainda foi descoberta a existência de uma amante.
Cientes da grave situação, a família e os amigos de Maria da Penha conseguiram dar apoio jurídico a ela e providenciaram a sua saída de casa sem que isso pudesse configurar abandono de lar; assim, não haveria o risco de perder a guarda de suas filhas.
A próxima violência que Maria da Penha sofreu, após o crime cometido contra ela, foi por parte do Poder Judiciário:
O primeiro julgamento de Marco Antonio aconteceu somente em 1991, ou seja, oito anos após o crime. O agressor foi sentenciado a 15 anos de prisão, mas, devido a recursos solicitados pela defesa, saiu do fórum em liberdade.
Mesmo fragilizada, Maria da Penha continuou a lutar por justiça, e foi nesse momento em que escreveu o livro Sobrevivi… posso contar(publicado em 1994 e reeditado em 2010) com o relato de sua história e os andamentos do processo contra Marco Antonio.
O segundo julgamento só foi realizado em 1996, no qual o seu ex-marido foi condenado a 10 anos e 6 meses de prisão. Contudo, sob a alegação de irregularidades processuais por parte dos advogados de defesa, mais uma vez a sentença não foi cumprida.
O ano de 1998 foi muito importante para o caso, que ganhou uma dimensão internacional. Maria da Penha, o Centro para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) denunciaram o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA).
Em 2002, conforme se verificou, era preciso tratar o caso de Maria da Penha como uma violência contra a mulher em razão do seu gênero, ou seja, o fato de ser mulher reforça não só o padrão recorrente desse tipo de violência mas também acentua a impunidade dos agressores.
Diante da falta de medidas legais e ações efetivas, como acesso à justiça, proteção e garantia de direitos humanos a essas vítimas, em 2002 foi formado um Consórcio de ONGs Feministas para a elaboração de uma lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher:
Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA); Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos (ADVOCACI); Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento (AGENDE); Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (CEPIA); Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM/BR); e Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero (THEMIS), além de feministas e juristas com especialidade no tema.
Após muitos debates com o Legislativo, o Executivo e a sociedade, o Projeto de Lei n. 4.559/2004 da Câmara dos Deputados chegou ao Senado Federal (Projeto de Lei de Câmara n. 37/2006) e foi aprovado por unanimidade em ambas as Casas.
Assim, em 7 de agosto de 2006, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei n. 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha.
Considerando que uma das recomendações da CIDH foi reparar Maria da Penha tanto material quanto simbolicamente, o Estado do Ceará pagou a ela uma indenização e o Governo Federal batizou a lei com o seu nome como reconhecimento de sua luta contra as violações dos direitos humanos das mulheres.
*Mariana Kotscho é apresentadora e jornalista do Papo de Mãe