Roberta Manreza Publicado em 02/02/2015, às 00h00 - Atualizado em 10/02/2015, às 11h09
Escassez hídrica tem epicentro no Sudeste com efeitos como desabastecimento permanente, risco de apagão e alimentos mais caros
por Cadu Caldas – ZH Notícias
Na virada do século, em 2001, o especialista em recursos hídricos Marcos Freitas, então diretor da Agência Nacional das Águas (ANA), foi convidado por uma revista a fazer projeções sobre o futuro do Brasil e como seria a vida dos brasileiros em 2015. À época, a resposta de Freitas pareceu um tanto esdrúxula: o país, mesmo tendo o maior volume de água doce do planeta, viveria uma grave crise hídrica.
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Em São Paulo, a população já sofre com a pressão reduzida na rede, o que muitas vezes significa conviver com torneira seca por até 18 horas. E pior: pode ser obrigada em breve a enfrentar um rigoroso racionamento e ficar quatro ou até cinco dias por semana sem água.
A medida drástica tem uma razão. Se a chuva não vier e o consumo não for reduzido, os reservatórios podem ficar sem água ainda no primeiro semestre. A previsão mais pessimista fala em desabastecimento completo em março. O cenário faz serem cogitadas possibilidades como antecipação das férias escolares de julho para maio, uma maneira de incentivar que muitas famílias deixem o Estado e, assim, diminuam o uso de água.
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Mas se o problema era conhecido há tantos anos, por que não foi evitado? A resposta é complexa. O fato é que a previsão de Freitas mais de uma década atrás não tinha nada de sobrenatural. Estava baseada em números:
– Entre 1998 e 2000, trabalhei na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), onde nos preocupávamos muito com a quantidade de água disponível. Quando fui transferido para a ANA, em 2001, e comecei a prestar atenção na qualidade. Fiquei estarrecido com a poluição de rios e a falta de tratamento. Era questão de tempo.
Mesmo comunicados, governos não tomaram providências
Hoje professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o técnico conta que a situação observada quase 15 anos atrás foi comunicada aos governos paulista e federal, mas não teve efeito. E atribui isso à “surdez pluripartidária”, já que obra de saneamento “não aparece” e, por isso, “não dá voto”.
– É impressionante que, até hoje, a ANA não consegue exercer poder de polícia e cuidar dos mananciais – observa Freitas.
O alerta da agência em 2001 não foi o único. Em 2009, o próprio governo paulista, com base na análise de mais de 200 especialistas, apontava risco de desabastecimento em 2015. E pior: a estiagem que afeta o Sudeste há pelo menos três verões foi apenas um dos fatores que intensificaram o problema. Não o gerou sozinho. É preciso incluir na conta o descuido com as fontes de água, a falta de investimento das empresas para evitar desperdício e a gestão inadequada, que tratou a água como fonte inesgotável quando era cada vez mais escassa.
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Soma-se a isso outro ingrediente: a falta de diálogo com a população. Em ano eleitoral, como foi 2014, candidatos tucanos e petistas fizeram malabarismos retóricos para amenizar a dimensão do colapso e evitar a palavra racionamento. O resultado é a pior crise hídrica da história de São Paulo.
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Racionamento e “guerra” à vista
Mesmo que a falta de chuva se concentre no Sudeste, é consenso que o impacto se espraiará pelo país. Se não por dificuldades no abastecimento, na alta do preço da luz e da comida e no enfraquecimento da economia. Analistas projetam que o Brasil crescerá 0,1% em 2015, só que o ajuste fiscal do governo e a falta de água podem levar a taxa para baixo de zero.
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Em Minas Gerais, após sobretaxar o consumo, o governo sinalizou que pretende adotar racionamento para diminuir o uso em pelo menos 30%. Eventos tradicionais, como o Carnaval em Ouro Preto, terão de ser adaptados. Até as repúblicas de estudantes, que costumam receber milhares de turistas durante o feriado, limitarão o tempo de banho.
No vizinho Rio de Janeiro, pelo menos dois reservatórios que abastecem o Rio Paraíba do Sul, principal fonte de água do Estado, já atingiram o volume morto. Incapaz de evitar a escassez, o governo aventa a possibilidade de racionamento nos próximos meses.
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Até onde a crise hídrica é capaz de chegar? Difícil dizer. Mas especialistas indicam que o cenário atual é só o início de uma “guerra hídrica” entre os Estados por rios que cortam o Sudeste do país.
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A primeira trincheira já foi, inclusive, definida: o Paraíba do Sul, que nasce em São Paulo, mas também corta Minas e o Rio, ao longo de 1.137 quilômetros de extensão.
Aos cariocas, o rio é vital por abastecer 11 milhões de habitantes. Na sexta-feira, foi revelado o projeto da obra que interligará a Bacia do Paraíba do Sul ao Sistema Cantareira, que só deve ficar pronta em 2016. O uso dessa água gera divergências desde novembro e parou no Supremo Tribunal Federal, que fixou prazo até 28 de fevereiro – pouco antes do previsto para o colapso hídrico paulista – para cada governo apresentar propostas para resolver a crise.
– É uma escassez que se arrasta. E mesmo que chova muito acima da média durante cinco anos, e os reservatórios voltem a ficar totalmente cheios, nada vai ser como antes – sentencia Roberto Kirchheim, geólogo especializado em recursos hídricos.