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Roseli de Deus Lopes: “A criança nasce cientista. É a escola que a silencia”

Roberta Manreza Publicado em 23/05/2016, às 00h00 - Atualizado às 12h24

Imagem Roseli de Deus Lopes: “A criança nasce cientista. É a escola que a silencia”
23 de maio de 2016


A engenheira da Universidade de São Paulo, idealizadora de uma das maiores feiras de ciências do país, diz que falta de infraestrutura ou de professores com formação específica não é impeditivo para o ensino do método científico aos alunos

FLÁVIA YURI OSHIMA – Revista Época

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Roseli Lopes, professora do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Escola Politécnica da USP, e idealizadora da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia, a Febrace (Foto: Divulgação)

Roseli Lopes, professora do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Escola Politécnica da USP, e idealizadora da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia, a Febrace (Foto: Divulgação)

ÉPOCA – Como surgiu a ideia de montar uma feira de ciências?

Roseli de Deus Lopes – Há 15 anos, percebemos que para estimular jovens a irem para a universidade, precisaríamos atuar na educação básica. Eles não sabem que são supercriativos e que têm esse potencial todo para ser mostrado aqui. Fizemos uma pesquisa e identificamos que mesmo as escolas que faziam os melhores trabalhos em ciências tinham uma questão: os trabalhos nessas escolas eram muito mais de reprodução. O professor mostrava uma tecnologia e o aluno montava alguma coisa muito parecida com aquilo só para ilustrar. Não era um movimento em que se tenta buscar os problemas e uma solução para eles. Era o oposto. Eles buscavam problemas que fizessem sentido para aquela tecnologia que já estava desenvolvida. Então, era um raciocínio às avessas, de colônia mesmo. A receita já vem de outro lugar, você monta e ensina as pessoas a usarem. A gente percebeu que o problema era anterior a esse. Não era uma questão de aprender a usar a tecnologia, mas, sim, o de provocar um olhar mais observador por parte do aluno para que ele identifique os problemas e aí o uso das tecnologias vem mais naturalmente. Partir do problema é um jeito de fazer as disciplinas da escola fazerem sentido na vida. Para que eu vou querer biologia? Não é só para passar numa prova, ou num vestibular. Eu tenho de perceber o valor que aquilo tem para a minha vida.

ÉPOCA – Esse foi o critério para selecionar os trabalhos que poderiam participar da feira?

Roseli – Sim. O objetivo da Febrace não era ser grande, mas, sim, ser representativa. Queríamos ver o que está acontecendo nas escolas públicas e privadas deste país afora. Começamos a desenvolver uma série de materiais e de ações para estimular as escolas a adotar esse tipo de trabalho e a realizar pequenas feiras internas para estimular esse ambiente. As feiras de projetos são importantes porque são um espaço de troca. A gente aprende observando o que o outro está fazendo.Criamos um curso online que mostra o que é fazer um projeto, e o que é o método da pesquisa tecnológica. É um curso que indicamos tanto para os professores quanto para os alunos. Preparamos os cursos online colhendo materiais nas feiras. Então, nesse curso online, há exemplos de pessoas que fizeram projetos em diferentes situações. Adotamos uma linguagem simples e bem voltada para a prática. Nossa preocupação é que ele vá colocando em prática de acordo com a complexidade que cada faixa etária permite, ao invés de ele se aprofundar demais na teoria e perder o fio da meada na prática.

ÉPOCA – O alvo são as crianças de qual idade?

Roseli – Nós fizemos o curso numa linguagem simples que mesmo crianças já alfabetizadas a partir do fundamental I (6 anos de idade)já acompanhem. A ideia é que o professor faça o curso primeiro e ele mostre o mesmo material para orientar os alunos. O papel principal do professor é em relação às questões de segurança e de ética na pesquisa. A criança é tão curiosa e tão criativa que às vezes propõe ações e formas de investigar as hipóteses que formulam que podem colocá-la em risco físico ou em risco emocional. Imagine se ela elabora um questionário que possa colocá-la em situações constrangedoras. A ideia é que o aluno faça um plano de ação e procure um professor ou um outro adulto que possa orientá-lo e que avalie se as perguntas e as suposições estão bem formuladas, ou se os materiais que eles teriam de usar estão disponíveis na escola e se apresentam algum risco na manipulação. Como eles têm de viajar, nos concentramos na faixa etária de 13 a 20 anos. Mas, incentivamos que nas escolas e nos municípios, eles trabalhem com todas as faixas etárias. A criança nasce cientista, nasce engenheiro e tecnologista e a escola ruim é que o cala. Ela mata a curiosidade, mata a capacidade de a criança observar.

ÉPOCA – Como as crianças vêm parar aqui? Vocês vão até eles ou é um movimento que parte da escola ou do aluno?

Roseli – Hoje temos uma rede diversa. Ao longo desses anos, fomos credenciando feiras. Metade dos alunos vem por submissão direta e a outra metade vem através de outras feiras. Pelo ambiente virtual mantemos o contato e o estimulo às escolas e aos alunos que se interessam em participar. Então, quando o aluno traz alguma questão que o professor não consegue resolver, ele recorre à comunidade Febrace para buscar o apoio de alguém. A gente também recomenda que ele busque em sua própria comunidade esse apoio: na universidade da cidade ou na escola técnica que pode ter peritos naquele assunto. A ideia é que as escolas peçam inclusive ajuda para usar a estrutura da universidade para seus testes de hipótese.
Há situações, ainda, que o movimento parte totalmente do aluno. Se ele quer participar e não consegue o suporte da escola (sim, existe isso), ele procura ajuda fora para montar o seu projeto. Numa edição da feira, demos um microscópio como prêmio para um determinado projeto. Avisamos que o aparelho não era para as crianças, mas, sim, para a escola. Quando chegou o final, muito delicadamente, as crianças me chamaram para dizer que tentaram uma professora na escola, mas não encontraram ninguém que quisesse ajudá-las, nem mesmo a direção da escola. Então, pediram ajuda para uma vizinha que estava começando a fazer engenharia em Maringá, no Paraná. Por isso, eles não queriam levar o prêmio para a escola porque achavam que a diretora trancaria o aparelho no depósito e desdenharia do prêmio. Eu os convenci que esse seria mais um motivo para eles levarem o prêmio para a escola, para mostrar do que foram capazes e de como era importante dar apoio aos alunos.

ÉPOCA – Qual é a resposta hoje de quando as escolas e alunos pedem ajuda nas universidades?

Roseli – Há 14 anos, eu diria que era difícil receber esse retorno. Mas com o tempo, conseguimos trazer mais visibilidade para os projetos com ações conjuntas com o ministério de educação, com as universidades e as agências de fomento. Hoje, as universidades não estranham mais quando recebem pedidos da garotada. Há dois anos, foi criada uma bolsa de iniciação científica júnior e isso facilitou muito. Muitas universidades hoje têm programas de pré-iniciação. Esse processo de valorizar as iniciativas dos alunos da educação básica tem rolado.
ÉPOCA – De quanto é essa bolsa para alunos da educação básica?

Roseli – É de R$ 1 200 no total. O valor pode parecer pequeno, mas para alguns essa é justamente a verba que falta para ele poder comprar alguma coisa para o projeto ou para ele poder se deslocar até a universidade. O mais importante é o valor simbólico dessa bolsa porque ele abre a porta dos centros universitários, dos centros de pesquisa. Antes, o orientador tinha medo de ter o aluno no laboratório. Agora, com a bolsa, ele tem também um seguro para a pesquisa. Antes tínhamos muitas situações informais. Hoje conseguimos ter situações formais de pesquisa com crianças e adolescentes.

ÉPOCA – Vocês já conseguiram acompanhar o destino das crianças que passam pela experiência científica?

Roseli – Estamos fazendo pesquisas com alunos e professores que participaram de feiras e também alunos que submeteram seus trabalhos mas que não foram aprovados para participar da feira. O que aconteceu com essa criança, como ficou o envolvimento dela com a pesquisa? Os resultados são animadores. Eles nos relatam que aprenderam a desenvolver um trabalho seguindo o rigor científico, a respeitar todas as etapas, a melhorar a pesquisa, a apresentá-la. Com as crianças que participaram das feiras, as mudanças são ainda maiores. Eu mesmo me surpreendo. Tem menino que eu vi no primeiro dia de feira e voltei a falar com ele no terceiro dia e ele parece outra pessoa. Eles se desenvolvem muito depressa! O fato de serem estimulados a conversar com pessoas diferentes sofistica o discurso deles. Eles têm de treinar falar com um avaliador que ficará mais tempo e com um jornalista que ficará 10 minutos com eles. Eles estão conseguindo desenvolver essa capacidade de raciocínio, de pescar o que é mais importante de acordo com o tempo e público.

ÉPOCA – Além da comunicação, que é superimportante, que outros aspectos essas crianças e adolescentes desenvolvem?

Roseli – Muitos. Inclusive lançaremos um série inspiradores, contando algumas histórias. Alguns dos alunos que passaram por aqui estão começando o doutorado, outros criaram suas empresas. Uma das alunas que mais me encanta participou de uma das primeiras feiras.Ela tinha medo de ir ao Butantã. Mas o instituto  foi até a escola pública buscar esses alunos. Ela disse que não queria ir aos laboratórios porque tinha medo dos bichos. O orientador do Butantã, que já tem muita experiência com crianças, soube se aproximar e explorar esses receios dela, tranformando-os em curiosidade. Ela queria saber porque o escorpião estava há tanto tempo na Terra. Ela não era um aluna nota dez. Mas motivada por essa pergunta, desenvolveu um trabalho belíssimo. Passou por uma rodada estadual, nacional e participou de duas feiras internacionais. Essa menina entrou em biologia e ela é absolutamente apaixonada pela área – e ela não era antes. Agora quer fazer medicina porque descobriu a motivação da vida dela. Ela investigou o veneno do escorpião para descobrir formas de usar as propriedades do veneno para curar as pessoas. Já fez estágio no Butantã, no InCor (Instituto do Coração), sendo que no InCor ela conseguiu o estágio com o contato de uma pessoa que viu o trabalho dela aqui na feira. Então, essa rede de contatos tem de ser estimulada. Esse é um investimento que só pode dar certo. É importante falar também dos professores. Motivados pelos alunos, eles passaram a investir mais em suas carreiras. Muitos desses professores estão voltando para fazer pesquisa em educação em suas áreas. Muitos estão voltando a fazer mestrado e especializações.

ÉPOCA – Há muita diferença entre a escola pública e a privada?

Roseli – Essa é uma boa pergunta porque me dá a oportunidade dedesmistificar um pouco o ensino das ciências e da tecnologia. Aqui a gente tem escolas que ficam no interior do Maranhão, que não têm estrutura, mas que têm o essencial, que é alguém que tem  vontade e que acredita que pode fazer a diferença. São alunos e professores que aprendem a fazer perguntas qualificadas.

ÉPOCA – O que é preciso ter na educação básica para fazer da pesquisa uma cultura?
Roseli –
A principal coisa é acreditar que dá para mudar, que dá pra fazer ciência em qualquer circunstância. Quando vemos um vídeo com todos esses sotaques diferentes criando e tocando seus projetos, vemos que tudo é possível. Temos histórias de crianças pequenas que geraram impacto em suas comunidades e criaram soluções sem nenhuma infraestrutura. No interior do Ceará, havia um problema com a pesca do camarão numa comunidade ribeirinha. A pesca estava acabando também com os camarões filhotes. Isso colocava a oferta de  camarões em risco de extinção e também diminuía a rentabilidade dos pescadores. Os camarões pequenos pesam menos. A aluna que participou da Febrace estava triste porque ela teria de mudar para outra local se a pesca acabasse. Então, ela quis fazer um projeto que buscasse uma solução para esse problema. Ela projetou uma armadilha de camarões com uma rede de espaçamento maior para liberar os camarões pequenos. E ela também mudou a amarração. Antes era usado plástico, e os peixes estavam comendo plástico e morrendo. Com o material que ela usou, que é biodegradável e se desfaz rapidamente, ela também solucionou esse problema. O pai não queria que ela o  testasse. Daí ela foi pescar com a armadilha escondida dele. Ele então percebeu que a armadilha pegava uma quantidade menor de camarões, mas eles eram maiores, então ele carregava menos peso e conseguia ganhar o mesmo dinheiro. Ela conseguiu convencer a comunidade inteira. Com a ajuda do professor orientador, ela conseguiu um contato com o Sebrae para criar uma empresa e replicar a solução. Crianças que passam por experiências como essas passama acreditar que podem fazer qualquer cosia. É uma questão econômica, porque estamos fomentando futuros empreendedores. E é social porque a questão do desenvolvimento social só será equacionada se cada um acreditar que pode mudar a sua comunidade.

ÉPOCA – A baixa qualidade da formação dos professores é um impedimento para esse tipo de programa?
Roseli – Temos de ser realistas. Se eles tivessem uma formação melhor, seria mais fácil. Mas temos de trabalhar com o professor que está na escola. Quando  quer, ele faz diferença. Temos exemplos de professores com formação muito precária e em realidades difíceis que fazem uma diferença incrível para esses alunos. Tivemos este ano, um professor de história que mobilizou uma escola inteira para desenvolver projetos de ciências. Ele não tem conhecimento na área, mas teve vontade e liderança. E, principalmente, acreditou nas crianças.

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