Sexta-feira santa. Hoje voinha faria jejum. Na casa de meus pais se comerá bacalhau, e aqui comeremos qualquer coisa, inclusive carne, como num dia normal
Vinicius Campos* Publicado em 02/04/2021, às 00h00 - Atualizado às 16h44
Cresci numa família de classe trabalhadora católica. Pais que vieram de realidades bem diferentes das que fui criado, e que mantinham a tradição de acreditar que suas conquistas eram, além de uma recompensa por seu esforço, também uma benção divina.
Minha querida avó Teresa, de uma dignidade ímpar e uma sabedoria invejável, tinha um entendimento tão belo de sua fé, que quando lhe contei que era gay me abraçou e me disse: a religião católica me ensinou que devo amar ao próximo e respeitá-lo exatamente como ele é.
Pois é, voinha tinha esse tipo de sensibilidade e inteligência. Sentia um amor e uma admiração tão profunda por ela que nunca tive coragem de lhe dizer que não acreditava nem no Deus bondoso que ela admirava, nem no Deus triste, severo e defensor das armas que os ignorantes idolatram.
Na minha infância rezava todas as noites, às vezes ia à missa, e adorava tudo aquilo. As músicas, os abraços no momento de desejar a “paz do senhor”, até os sermões bonitos do padre Renato, um velhinho que tinha um coração doce.
Uma vez, na missa, estavam todos repetindo: “por minha culpa, minha completa culpa, minha terrível culpa (acho que o texto real não é exatamente esse, mas foi assim ficou guardado em minha lembrança) e eu estava calado. Minha mãe perguntou: não vai dizer, Vi? E eu respondi: Não fiz nada de errado, mãe. Ela sorriu.
Nunca gostei de culpa. Responsabilidade, sim. Culpa, não.
Quando chegaram nossos filhos me preocupei. Será que seria capaz de ensinar o certo e o errado a meus filhos sem a figura de Deus? Sendo ateu teria as ferramentas para conduzir meus pequenos pelo caminho correto?
Depois de algumas noites sem dormir criei um sistema. Os três tipos de “respeito”. Respeito pelas pessoas e os animais, respeito pela comida, as coisas e a natureza e respeito por nós mesmos, pelo nosso corpo e mente.
Expliquei o conceito a nossos filhos, fizemos alguns desenhos para exemplificar os diferentes tipos de respeito, e colocamos os papéis na parede do escritório. Sempre que surgia alguma situação, voltava a explicar a importância do respeito para viver bem em sociedade e assim me tranquilizava que eles estavam entendendo o que para mim era importante sem a necessidade de uma figura superior.
Um dia estávamos no carro, e o Alfredo, nosso filho do meio, me perguntou: Vini, o que é pecado?
Fiquei encantado. Naquela pergunta ficava claro que nossos filhos estavam crescendo sem saber o que significava pecado e como consequência sem entender o conceito da culpa. Meus filhos cresciam livres para amar, sentir, viver, experimentar sem se sentirem sujos ou indignos. Nossos filhos tinham a possibilidade de experimentar a vida sem os olhos julgadores de um Deus todo poderoso.
Ele ainda esperava minha resposta. Pensei bem porque não queria jogar nosso trabalho no lixo e com cuidado disse: pecado é uma bobagem, uma invenção de alguns seres humanos para controlar aquilo que eu ou você temos vontade de fazer. Pecado não existe, e você é livre para fazer tudo aquilo que tenha vontade desde que respeite as outras pessoas, a você mesmo e a natureza.
Sexta-feira Santa. Hoje voinha faria jejum. Na casa de meus pais se comerá bacalhau, e aqui comeremos qualquer coisa, inclusive carne, como num dia normal. E como num dia normal o que vai nos guiar será o respeito ao próximo, que segundo minha sábia e saudosa avó, é o mandamento básico para se viver em harmonia.