Em entrevista ao Papo de Mãe, jovens contam como se entenderam membros da comunidade LGBTQIA+ e o processo de revelar aos pais e familiares
Maria Cunha* Publicado em 28/06/2021, às 20h30
Beatriz Sanchez se entendeu lésbica após perceber que gostava de beijar meninas, os pais dela precisaram de um tempo para aceitar a ideia, mas o resultado foi positivo. A mãe de Felipe Amaral sempre soube que o filho era gay, mas o pai não tem conhecimento até hoje. Pedro Cantelli não teve a oportunidade de revelar sua bissexualidade à família, sua tia viu uma publicação em seu Instagram e contou para sua mãe. Ariel Giagio, transexual, teve que "sair do armário" duas vezes, pois seus pais não aceitaram a sua transição no início, o que mudou. Confira as histórias completas!
Nesta semana, comemoramos o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. A data tem o objetivo de conscientizar a população da importância do combate à homofobia e da construção de uma sociedade livre e sem preconceitos.
É importante ressaltar que o Brasil, em 2020, foi eleito pelo 12º ano consecutivo o país que mais mata travestis e transexuais. Além disso, no ano passado, ocorreram 237 mortes violentas, registradas, de pessoas LGBTQIA+.
Em homenagem à data, o Papo de Mãe conversou com quatro jovens sobre como se entenderam da comunidade LGBTQIA+ e o processo de contar para os pais, pois todos devem se orgulhar de sua sexualidade e não sentir vergonha de serem quem são.
Beatriz Sanchez, de 19 anos, é estudante de Direito. Em 2017, Beatriz conta que começou a beijar amigas, mas só de brincadeira, já em 2018, ela começou a se questionar se realmente gostava de beijar meninas com um interesse a mais.
“Foi quando eu fiquei pela primeira vez com uma menina que eu não conhecia, não era minha amiga. Eu fui vendo que eu realmente gostava também de beijar garotas e fui me descobrindo e me entendendo”, revela a estudante de Direito.
Beatriz, então, começou a dizer para alguns amigos e conheceu Paula, sua atual namorada há mais de dois anos.
Foi bem tranquilo, foi natural, mas internamente rolou uma tensão, uma apreensão muito grande, porque o processo de se descobrir é um pouco difícil por medo, insegurança, por não saber se é isso, não saber como as pessoas vão reagir.
Apesar disso, a estudante de Direito diz que deu tudo certo e que foi muito privilegiada ao se abrir para sua família.
"Os meus pais são maravilhosos, minha família também e todos eles reagiram bem. Óbvio que os meus pais, principalmente, precisaram de um tempinho pra respirar e entender que talvez o futuro que eles visualizaram pra mim do lado de um homem não fosse acontecer, mas isso nunca foi um problema".
Beatriz reforça que é normal que os pais precisem de um tempo, já que ela reconhece que o momento é um choque, um baque. “Do nada, você fala assim: olha, não é assim, eu gosto de outra coisa”.
Mesmo assim, a estudante relata que contou pros pais, avós, tios e primos. Todos na família sabem, apoiam e amam, sem nenhum problema.
“O meu processo de descoberta e de sair do armário foi bem tranquilo, eu não tenho do que reclamar. Hoje em dia, é um orgulho poder levantar essa bandeira também e lutar por aqueles que não tiveram o mesmo privilégio que eu de ter uma família compreensiva e que estivesse ao meu lado independentemente de qualquer coisa”, conclui Beatriz Sanchez.
Felipe Amaral, de 18 anos, é estudante de Publicidade e Propaganda e conta que sempre soube que algo o diferenciava dos outros meninos quando era menor, mas só começou a se questionar com 15 anos.
Primeiro eu achava que era bissexual, depois dizia que era "sem rótulos" e só depois de um ano eu me entendi gay.
O estudante relata que conversou com sua mãe um mês depois que havia descoberto sua sexualidade.
“Chamei ela num final de tarde e falei, e a reação dela foi a mais acolhedora possível, ficou super orgulhosa e disse que já sabia desde quando eu era menor, que não tinha problema nenhum”.
Já para o pai, Felipe não teve a oportunidade se abrir. “Acabamos perdendo o contato por motivos maiores e sei que ele não gostaria de ter um filho homossexual”.
Atualmente, o estudante está namorando e para sua mãe, João Pedro, seu namorado, é o genro perfeito.
Pedro Cantelli, de 19 anos, é ator e estudante de Jornalismo. Na opinião dele, que afirma estar generalizando, todo mundo que é LGBT+ já sabe que é diferente, que não é o que o padrão propõe, desde sempre.
O ator conta que nunca teve contato com muitas pessoas do meio LGBT+ quando pequeno, até os 14 anos, mais ou menos, então não entendia muito o que era.
“Desde pequeno, eu já sabia que tinha atração tanto por mulheres quanto por homens e sempre foi algo que eu escondia, que eu negava. Eu achava que tinha dois lados, o heterossexual e o homossexual. Depois de muito tempo, com uns 14 ou 15 anos, eu fui entender o que as outras letras significavam”.
Pedro relata que entendeu o que era a bissexualidade quando conheceu a existência dela. Com isso, percebeu que podia gostar de um e também do outro.
Mas, ainda por muito tempo, até a metade de 2016, o estudante de Jornalismo diz que ainda se negava muito.
Eu falava não, não sou nada, eu sou hétero, e isso machucava, machuca bastante você se auto negar, você está se negando, então é triste isso.
Pedro detalha, então, como foi que assumiu para si quem era.
“Em um certo dia, eu falei: eu sei o que eu sou. Comecei a bater no peito e falar: eu sou bissexual. Depois contei para os meus amigos”.
Em relação a contar aos pais, o ator explica que não foi ele que revelou a própria bissexualidade aos pais, pelo contrário, e que foi uma situação bem chata. Na época, Pedro namorava há um mês e resolveu postar uma foto nos stories do Instagram.
“O meu perfil sempre foi aberto, mas a minha família inteira era bloqueada, não tinha eles em nenhuma rede social. Mas, eu tinha uma tia que tinha um Instagram falso, que ela usava pra "stalkear" (bisbilhotar) a família. Ela viu essa foto, tirou um "print" (foto da tela) e mandou para a minha irmã, para a minha mãe, para a minha outra tia e para a minha prima. Ficou um rebuliço na família, todo mundo ficou sabendo, e minha mãe chegou em mim, mostrou a foto e perguntou”.
Pedro Cantelli diz que isso foi muito, muito complicado no início, porque os pais não entendiam. Ele completa dizendo que até hoje, os pais não entendem muito bem, apesar de tentarem.
“Para eles, é o que muitas pessoas mais velhas pensam: bissexualidade é uma questão de promiscuidade. Isso machuca. Quando a minha mãe descobriu, eu saí correndo de casa, fui encontrar alguns amigos que estavam lá perto, me acalmei. Eu tinha tido uma crise de ansiedade e um ataque de pânico. Eu não consegui ficar lá na minha casa, minha mãe disse: "Se seu pai descobrir, ele infarta”.
No dia seguinte, Pedro lembra que o pai percebeu que ele estava estranho no caminho para a escola. Então, dentro do carro, o estudante começou a chorar e contou para ele.
“No início, ele reagiu melhor que a minha mãe, ele ficou até um pouco mais tranquilo por eu ter contado. Mas a gente acha que tudo vai ficar bem de início e não vai. Ainda é muito preconceito, muito não aceito”.
Hoje em dia, o estudante de Jornalismo revela ter virado uma pessoa que luta muito por respeitarem quem ele é e com quem está.
“Me deixarem ser quem eu sou. Eu me reconheço bissexual, eu me entendo bissexual”.
Atualmente, a mãe de Pedro lida melhor com a situação do que o pai. Ele conta que ela entende mais e que entende quem também tem a questão do machismo, a ideia do que o homem planejou para o filho homem dele.
Desde então, Pedro Cantelli diz que é uma luta muito grande, porque as pessoas por mais que entendam, respeitem ou que sejam do meio LGBT+, às vezes, para elas o bissexual não existe.
“Eu faço teatro, danço e eu não tenho vergonha, vou e faço, então falam: ele é gay. Depois, em conversas particulares, eu falo que sou bissexual e perguntam: como assim? Também tem pessoas que dizem que não ficariam com bissexuais, porque teriam mais chance de serem traídas, o que é uma estupidez porque bissexualidade não tem a ver com caráter”, pontua Pedro.
O ator conclui ao dizer que: “Existem questões que precisam ser desconstruídas urgentemente”.
Ariel Giagio, de 20 anos, é estudante de Jornalismo. Ariel é um homem trans e conta como foi a sua transição.
“Eu acho que nunca fui, obviamente, uma criança trans, eu sempre fui LGBT+, mas sem saber qual identidade se ligava a mim, então eu passei por várias identidades ao longo da minha vida”.
Ariel relata que quando fez intercâmbio, tinha 16 anos e começou a ter mais contato com assunto.
“Alguém que eu seguia no YouTube ou na internet saiu do armário como trans e eu descobri que era uma possibilidade. Eu não sabia que existia e aí é como se várias coisas começassem a se encaixar na minha cabeça: é por isso que você se sente desconfortável com isso, é por isso que você gosta de fazer isso.”
O estudante de Jornalismo lembra que no intercâmbio, ia em uma escola só de meninas e o uniforme tinha uma saia, com a qual ele se sentia desconfortável.
O jeito que eu encontrei foi comprar umas cuecas e usar debaixo da saia, porque eu me sentia mais confortável, eu tinha um segredinho comigo mesmo que eu ainda era masculino debaixo da saia.
Ariel ainda pontua que nunca se depilou ou gostou de passar maquiagem, mas não tomava esse sinais como se fosse trans, ainda mais com os movimentos feministas, que afirmam que tudo bem não fazer essas coisas.
Com o passar do tempo, o estudante de Jornalismo relata que começou a entender mais o que queria, como queria que as pessoas o vissem e como ele mesmo se via.
"Uma dificuldade muito grande, no começo, foi que eu me olhava no espelho e obviamente via um homem. Mas, quando eu saía na rua, ninguém me tratava como homem e era muito estranho, muito desconfortável".
Quando voltou do intercâmbio, Ariel teve que confirmar se queria mesmo levar isso a sério, porque no intercâmbio, por ser uma coisa temporária, podia fazer o que quisesse e as consequências não iam ser tão graves, porque iria embora. Ao voltar para casa, foi mais complicado, demorou um tempo para conseguir contar para os pais e para todos.
"A minha transição, no começo, eu não sentia muita necessidade de fazer alguma coisa médica, porque para mim sempre foi uma coisa mais social, então mesmo antes de tomar testosterona e de qualquer coisa que acontecesse com o meu corpo, eu já me via no espelho como um homem, eu só precisava que as outras pessoas entendessem isso e me tratassem desse jeito", explica o estudante Ariel Giagio.
Então, Ariel falou com os pais e disse para eles que era não-binário, como se reconhecia na época. Primeiro, contou para mãe e teve que explicar o que era uma pessoa não-binária.
"A minha mãe foi super disposta, ela procurou revistas sobre o assunto e se informou, mas foi complexo, ela fazia várias perguntas difíceis e que eu não estava preparado para responder".
Depois disso, Ariel conta que em um dia, seu pai ouviu os dois conversando sobre isso e brigou muito com o filho, perguntando por que ele estava escolhendo ser assim. Nesse momento, Ariel percebeu que não era o melhor momento para fazer a transição.
"Eu reprimi tudo isso e vivi um ano como mulher. Passado esse ano, eu tive um 'breakdown' e crises de ansiedade, e descobri que era porque eu estava vivendo como mulher e não estava lidando com a minha realidade de que eu precisava ser quem eu era, eu estava ignorando uma parte de mim. Por isso, eu saí do armário pela segunda vez com os meus pais", relembra o estudante de Jornalismo.
Dessa vez, os pais de Ariel entenderam mais, mas, mesmo assim foi complicado, pois o estudante é trans e gay.
"Para minha mãe isso não fazia sentido, mas ser trans é em relação ao gênero, o que é diferente de sexualidade. Eles falaram várias coisas ruins e preconceituosas, mas principalmente pela ignorância no assunto. Independentemente disso, meus pais sempre foram muito calorosos comigo e sempre deixaram claro que qualquer coisa que acontecesse, eles continuariam me amando e me apoiando. Cada vez mais, o entendimento deles melhora, nunca vai ser perfeito, mas nenhum pai é, eu agradeço os pais que eu tenho".
Com o apoio dos pais, Ariel passou a usar nome social e querer que as pessoas mudassem os pronomes que se referem a ele, o que é um processo.
"Essas pessoas não se sentem confortáveis, porque elas não te veem como homem e é desconfortável, porque fica óbvio praa você que as pessoas não te veem do jeito que você quer", explica Ariel Giagio.
Em setembro do ano passado, o estudante de Jornalismo começou a tomar testosterona o que tentou fazer sozinho, mesmo tendo o apoio dos pais. Ele procurou um médico e usou o convênio, mas sua mãe é médica e Ariel estava com muita dificuldade de achar um bom médico.
"Eu sabia que se eu pedisse ajuda dela, ela ia me dar essa ajuda mais especializada, porque ela tem contatos e ela sabe como achar um bom médico. Eu conversei com ela e a gente encontrou minha endocrinologista e para mim foi super fácil, porque eu já tinha ido no psicólogo e no psiquiatra, feito tudo o que eu tinha que fazer. Cheguei nessa endocrinologista entendida e especializada, porque os outros endocrinologistas que eu fui não sabiam o que estavam fazendo, não tinham especialidade nisso, achavam estranho e colocavam vários obstáculos para eu conseguir a prescrição".
Ariel Giagio conclui ao contar que, antes, buscava a identificação com o sexo masculino em roupas e em outras pessoas o tratando como homem. Hoje, já não precisa mais tanto disso.
"Eu vejo no meu próprio corpo um conforto, uma certeza que sou homem. Quem falar que eu sou mulher, obviamente, vai estar errado, eu sei que eu não pareço mais mulher".
*Maria Cunha é repórter do Papo de Mãe
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