'Quando souberam que a minha filha é T21, as vagas não estavam disponíveis', conta Débora Jardina
Ana Beatriz Gonçalves* Publicado em 30/06/2021, às 18h12
Os planos de se mudar para Cuiabá, capital de Mato Grosso, tiveram que ser adiados. Débora Jardina, mãe da Eduarda, de 12 anos, ainda não conseguiu uma vaga na escola para a pequena, que tem síndrome de Down (T21). É para cursar o segundo semestre do 6º ano. O Papo de Mãe conversou com a veterinária, que mora em Indaiatuba, interior de São Paulo, sobre a situação inaceitável que encontrou ao tentar matricular a filha em pelo menos cinco escolas particulares de Cuiabá.
"A Duda está matriculada em uma escola regular, ela estuda desde um ano e oito meses. Até agora nunca havia encontrado uma negativa" conta Débora, que sempre morou no estado de SP com a filha, mas que por conta de questões pessoais e profissionais, decidiu mudar de estado – o que hoje, não está sendo possível.
Débora conversou com as seguintes Instituições de ensino no Cuiabá: Escola Adventista Centro América, Escola Livre Porto Cuiabá, Unicus Global Education e Colégio Master Unidade Alvorada. O Colégio Notre Dame de Lourdes marcou uma reunião nesta sexta-feira (2) com Débora. "Todas essas escolas disseram que teriam vaga para o 6º ano do ensino fundamental 2. Mas quando souberam que a minha filha é T21, as vagas não estavam disponíveis."
A resposta de quatros instituições particulares chama a atenção, já que pela lei isso não é permitido. De acordo com o artigo 8º da Lei 7.853/89, escolas públicas e particulares não podem negar a matrícula a um aluno com deficiência, e devem fornecer assistência com profissionais qualificados.
De acordo com informações da ONG Nosso Olhar, parceira do Papo de Mãe, em 2009 tais direitos ficaram ainda mais explícitos com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo (decreto n°6.949). Segundo o artigo 24, que trata o tema educação, é reconhecido o "direto das pessoas com deficiência à educação, com base na igualdade de oportunidades, assegurando assim um sistema educacional inclusivo em todos os níveis".
Ao se deparar com o que ela chama de retrocesso, Débora Jardina, mãe da Duda, foi orientada pela Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso a denunciar tais recusas, todas com justificativas diferentes, na Promotoria Infantil ou na Defensoria Pública.
"Parece que estou na década de 90 e que tenho que convencer as escolas que a minha filha precisa ter a disponibilidade de matrícula. O que mais me frustra é que parece que está tudo bem. Quem tem filho com deficiência, que procure o ensino público, mas não é por aí. Nós temos o direito de escolher!".
Escola Adventista Centro América – "Conversei com a Prof. Keyla, ela é orientadora pedagógica do ensino fundamental 2. Quando perguntei sobre o acolhimento de alunos com deficiência, ela recomendou que eu procurasse outras escolas como a Livre Porto. Ela disse que os professores do 6º ano são especialistas e que não possuem experiência para realizar as adaptações necessárias."
Escola Livre Porto Cuiabá – "No atendimento, a coordenadora me disse que a escola iria avaliar o caso da minha filha para estabelecer os melhores procedimentos. Uma semana após o atendimento presencial, a coordenadora disse que não poderia receber minha filha, pois na classe já havia uma aluna com deficiência. Eu fiquei bem nervosa e pedi um posicionamento da direção da escola, até hoje não recebi a devolutiva."
Unicus Global Education – "Nesta escola, a coordenadora e a diretora justificaram a não disponibilidade de vaga com a resolução 001/2012 da lei, que recomenda o máximo de dois alunos com deficiência em uma sala comum de 20 alunos. A diretora disse que haveria vaga para o 2º semestre e depois mudou o discurso com base no número máximo de alunos com deficiência que já estão matriculados no 6º ano."
Colégio Master Unidade Alvorada – "O atendimento foi apenas por telefone, mas a coordenadora explicou que hoje em dia a escola é orientada a focar em resultados de vestibulares, e que se fosse no passado talvez minha filha tivesse outra possibilidade de acolhimento."
Em busca de entender o cenário das mães de crianças com Down no município, Débora entrou para um grupo no WhatsApp e descobriu que a realidade é mais comum do que pode se imaginar. Segundo ela, a maioria das mães sente medo de denunciar por conta do bullying que o filho(a) pode vir a sofrer. "Uma coisa é a criança entrar na escola, outra é ela permanecer e aprender de verdade", explica.
Para ela, tudo isso é triste, desgastante e frustrante. "Nenhuma dessas escolas dá a chance de modificar esse ambiente escolar. Se as escolas públicas têm seus desafios, a escola particular parte de um lugar com mais recursos, mas é justo essa que não quer, ou que limita e nivela por baixo."
Acostumada com mudanças, a veterinária já morou no Paraná e em diferentes cidades de São Paulo. Para ela, apesar de não ser mais uma novidade, a questão da inclusão de crianças e adolescentes com T21, varia de local para local. "Isso já é uma conversa antiga, mas que em alguns lugares parece que não. Eu acho que existe um atraso, e tem algo que é muito sutil. São esses filtros sociais que incomodam."
Desde 1989 existem leis que defendem o direito de inclusão para pessoas portadoras de deficiências intelectuais. O artigo 8º da Lei nº 7.853/89, primeira delas a vigorar pela inclusão, diz que "qualquer escola, pública ou particular, que negar matrícula a um aluno com deficiência comete crime punível".
Uma das resoluções mais recentes, de 2015, deixa explícito que a discriminação vai contra a Constituição:
Art. 4º Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação. (LEI Nº 13.146/2015).
Ainda segundo a legislação, a escola privada não pode praticar nenhum ato que implique discriminação dos alunos com deficiência, seja no momento da matrícula ou em sua permanência na escola. Assim como o ensino público, o ensino privado deve sim oferecer condições de acessibilidade e inclusão aos alunos com deficiência.
No portal oficial do MEC (Ministério da Educação), a diretora de Políticas da Educação Especial, Patrícia Neves Raposo, afirma que o Ministério, por meio dos seus programas e ações, tem apoiado sistemas de ensino para garantir o acesso à participação e aprendizagem de todos os alunos.
"Nosso desafio, agora, é garantir a participação dos alunos, qualificando sistemas de ensino e professores e melhorando a acessibilidade para que todos os alunos tenham o seu processo escolar e de aprendizagem efetivos."
O Papo de Mãe conversou com o advogado Fabio Mesquita Pereira Srougé, sócio do escritório Srougé e Reis Advogados, que explicou como prosseguir em situações como essa. Segundo ele, a legislação define como crime a conduta de "recusar, cobrar valores adicionais, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, em razão de sua deficiência”.
Fabio ressalta a existência da pena de reclusão por tal ato, que pode ser de 2 a 5 anos, além do pagamento de multa. "Se o crime for praticado contra pessoa com deficiência menor de 18 anos, a pena é agravada em um terço', comenta.
Dentre algumas obrigações, Fabio Mesquita Pereira Srougé enumera:
O advogado afirma que é preciso procurar sim a justiça. Fabio afirma que é possível propor uma ação judicial contra a escola, pleiteando a obrigação da escola de matricular o filho. "Inclusive, é possível pleitear danos morais, se ficar comprovado que houve ato discriminatório", afirma.
"O Ministério Público deve instaurar um inquérito para apurar se houve prática de crime discriminatório. Também é possível pedir uma indenização de danos morais. Não é algo totalmente garantido, depende da apuração do MP", conclui.
O Papo de Mãe procurou todas as instituições citadas nesta matéria. Até o momento, apenas o Colégio Unicus Global Education se manifestou. Eles reiteram que no ano letivo de 2021, o Colégio conta com apenas uma turma/sala para o 6º ano, no período matutino e com a capacidade de 20 alunos. Essa turma atende, atualmente, três crianças com adequação curricular e cada aluno(a) é acompanhado(a) por auxiliares, com plano pedagógico particularizado e avaliação adequada a cada caso.
Eles dizem que estão de acordo com o Plano Político Pedagógico (PPP) registrado e autorizado pelo Conselho de Educação e, ainda atende a legislação vigente no Estado de Mato Grosso, conforme Resolução Normativa 001/2012. "Informamos à interessada que o período de matrícula ocorrerá no próximo mês de outubro, razão pela qual foi sugerido que fizesse novo contato com a secretaria para verificação de vagas para o ano letivo de 2022".
O Colégio Adventista Centro América entrou em contato com o Papo de Mãe na segunda-feira, 5 de julho, lamentando a situação. De acordo com a Instituição, "a unidade de ensino garante que em momento algum se recusou a fazer a matrícula da filha de Débora ou agiu de forma discriminatória".
A nota de esclarecimento também diz que o colégio foi procurado por Débora no dia 14 de junho de 2021, e na ocasião "foram sanadas todas as suas dúvidas sobre o atendimento oferecido pela unidade de ensino para alunos com deficiências e convidada também a conhecer a estrutura e as dependências do colégio, mas ela se recusou e disse que não era necessário".
"Na mesma data, por volta da hora do almoço, a coordenação da unidade fez contato via WhatsApp com a Débora mencionando que estava aguardando um retorno para uma possível matrícula de sua filha e até encaminhou um arquivo em PDF com a lista de materiais escolares. No entanto, não obteve respostas de Débora."
Já a Escola Livre Porto Cuiabá retornou à solicitação dizendo que encaminharia o pedido à Coordenação do Ensino Fundamental. Aguardamos os demais posicionamentos e, assim que forem feitos, serão incluídos nesta reportagem.
*Ana Beatriz Gonçalves é jornalista e repórter do Papo de Mãe
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