A violência doméstica é tida como uma epidemia no Brasil, e a maioria das vítimas são mães, agredidas, em geral, pelo pai dos próprios filhos
Vanessa Cesnik* Publicado em 27/07/2021, às 07h00 - Atualizado às 17h37
Muitas pessoas sonham com um relacionamento de casal com cumplicidade, amor, carinho e prazer em que uma pessoa incentiva a outra a ser cada vez melhor, levando a família para uma situação mais feliz e saudável. Porém apesar dos sonhos, muitas mulheres estão vivendo um relacionamento abusivo com o pai dos filhos e se sentem incapazes de sair dessa situação. A maioria das mulheres nessa situação não consegue identificar esse tipo de relacionamento, não percebe o mal que isso faz para ela e para os filhos e não sabe dizer porque isso acontece na vida dela. E você? Sabe o que é um relacionamento abusivo? Sabe identificar se isso está acontecendo na sua vida e sabe como sair dessa situação? Para entender um pouco melhor sobre tudo isso, a psicóloga e co-fundadora d'O Corpo Explica Dra. Vanessa Cesnik responde as maiores dúvidas sobre esse tema que assusta tantas mulheres hoje em dia.
Relacionamento abusivo é um distúrbio de prioridades que acontece em um nível extremo em que uma pessoa se anula e aceita agressões de outra pessoa que em teoria deveria dar amor, carinho e afeto.
Existem três níveis de relacionamento abusivo que são divididos a partir do tipo de agressão que ocorre:
Em todos os níveis, a vítima do relacionamento abusivo se sente insegura, fraca, diminuída e insuficiente e na maioria das vezes não consegue enxergar que está vivendo em um relacionamento abusivo. Ela acredita que esse tipo de relacionamento é o "normal" e não consegue analisar as consequências negativas para a vida dela ou até mesmo para a vida dos filhos.
O relacionamento abusivo pode causar vários problemas na vida de uma mulher e, dentre eles, os principais são a insegurança e a sensação de incapacidade tanto na vida pessoal quanto na vida profissional. Esse distúrbio de prioridades faz com que ela se anule e se submeta à opinião do parceiro que tenta diminuí-la a qualquer custo de forma que sua auto imagem se torna negativa e ela acaba acreditando que é exatamente tudo aquilo (de ruim) que o parceiro diz que ela é.
E nesse processo existem sinais óbvios de estar em um relacionamento abusivo, como apanhar e ouvir ofensas, porém o ponto principal que precisa ser visto é justamente a forma como ela se sente vítima e incapaz somada à forma como ela sente que precisa do outro para ser alguém na vida. Ela sente que a opinião dela realmente não tem valor e por isso ela sempre depende da aprovação das outras pessoas, especialmente a aprovação dessa pessoa que a trata como lixo mesmo falando que a ama.
Justamente por causa desse tipo de dificuldade de identificar se está ou não em um relacionamento abusivo é que as pesquisas desenvolvidas pelo grupo O Corpo Explica ganham destaque porque a partir do formato do corpo é possível identificar quais pessoas têm maior tendência a desenvolver esse tipo de distúrbio de prioridade.
Dentre os cinco tipos de pessoas (traços de caracteres) que existem (Esquizóide, Oral, Psicopata, Masoquista e Rígido), três possuem mais tendência a entrar nesse tipo de relacionamento: Oral, Masoquista e Rígido especialmente quando atrelados a traumas específicos sofridos na infância.
Os filhos que são frutos de um casal que vive em um relacionamento abusivo crescem com uma distorção muito grande do papel feminino e do masculino e vivenciam uma inversão de papéis que atrapalha essa criança na vida como um todo. Pais saudáveis cuidam, amam e protegem seus filhos das coisas ruins, enquanto que pais que vivem um relacionamento abusivo forçam a criança a crescer antes do tempo, assumir responsabilidades acima do esperado para aquela idade e se forçar a ter preocupações que trazem traumas profundos para ela.
E isso porque em todo relacionamento abusivo existe uma "vítima" e um “monstro” e a criança sente que é responsabilidade dela mudar essa situação. E quando isso acontece, ao invés de ser cuidada ela fica tentando cuidar, e acaba assumindo o papel de proteger a "vítima" e brigar contra o "monstro".
Esse fato faz com que a criança inverta os papéis e isso acaba fazendo muito mal para ela porque não se sente cuidada, amada e protegida, itens básicos para toda criança crescer saudável emocionalmente. Nessa posição em relação aos pais, ela sente uma insegurança muito grande porque não tem ninguém cuidando realmente dela. Existe uma mãe a ser protegida e um pai a ser combatido.
E o que torna isso muito pior? Aqui em O Corpo Explica tem casos de atendimento de pessoas adultas que passaram por situações parecidas durante a vida. O mais comum de se encontrar é quando a criança passa por problemas mais graves na vida dela (como, por exemplo, um abuso sexual) e ela acaba não contando para a mãe ou para o pai porque não quer ser mais um problema e um fardo para esses pais, afinal eles já têm problemas demais. E isso faz com que a criança carregue esse fardo sozinha sem conseguir ninguém para protegê-la dessa invasão.
Nós não estamos aqui procurando um culpado, mas nós temos que falar quem são os responsáveis por todo esse problema do relacionamento abusivo. Quando falamos de um relacionamento abusivo é óbvio que a culpa é do "monstro", pois ele não está respeitando a "vítima", os filhos, a família e está trazendo problemas para todo mundo com sua postura que anula os outros ao seu redor. Porém quando estamos falando de um relacionamento entre adultos, não podemos deixar de falar sobre a parcela de responsabilidade da vítima, afinal tudo o que acontece entre um casal é responsabilidade de ambos, 50% de cada um.
Esse funcionamento é tão forte nessa mulher que muitas das vezes ela sai de um relacionamento abusivo e acaba entrando em outro, seja com pai, mãe, amigas ou com outro namorado, porque ela tende a buscar um relacionamento abusivo na vida dela como um todo justamente por causa do distúrbio de prioridade que ela vive dentro dela.
Quer dizer que a mulher escolhe e gosta de estar em um relacionamento abusivo? De acordo com o que aparece nas pesquisas e atendimentos dentro d'O Corpo Explica, a mulher escolhe sim, mesmo que não goste. Então qual a responsabilidade da mulher nessa situação? Por que dizemos que ela escolhe?
A responsabilidade dela é em buscar de forma inconsciente um relacionamento que vai colocá-la em uma posição de vítima perante a sociedade. E essa necessidade de ser reconhecida como vítima (sem culpa) da situação é uma necessidade pregressa dessa mulher, ou seja, desde criança essa mulher sente a necessidade de provar que ela não é a culpada pelo problema e sim vítima de uma situação externa fora de seu controle.
De acordo com as pesquisas que O Corpo Explica realiza sobre essa questão, a mulher com tendência a atrair relacionamentos tóxicos e abusivos vivenciou em um ou mais traumas que fizeram ela se sentir culpada, mesmo que a culpa não fosse dela. Ela se sente culpada por ter sido abusada sexualmente, se sente culpada por um irmãozinho que se feriu perto dela, se sente culpada por algo grande e ruim que aconteceu na vida dela.
A partir dessa experiência ela cria um padrão de repetição dessa história de forma a buscar provar para o mundo que ela não é culpada, ou seja, que ela é vítima ou inocente nas situações. Quando se é criança é fácil e simples entender que ela é vítima e inocente em relação às coisas ruins que ela vivencia, afinal ela era só uma criança. Porém como adulto, como conseguir provar que se é vítima ou inocente?
Uma das formas que a mente encontra de realizar essa necessidade de se provar como vítima ou inocente é encontrando um relacionamento abusivo para que as pessoas de fora olhem e falem: "Sai dessa amiga… você precisa entender que a culpa do que tá acontecendo não é sua, e sim do 'monstro' que está com você".
E é importante ressaltar que por mais que O Corpo Explique mostre que essa repetição de padrão de relacionamento abusivo seja escolha da mulher, ela não gosta de ser vítima. Nos atendimentos que são para mulheres nessa situação, é possível verificar a repetição desse tipo de padrão ao longo da vida. Então essa escolha é uma escolha inconsciente.
A boa notícia é que sim, tem como sair disso. Existe uma ferramenta terapêutica chamada A Troca Justa que serve para acessar a história da pessoa, buscando os traumas que fizeram ela ter esse tipo de necessidade inconsciente e dar ações específicas para ajudar a pessoa a se livrar do problema.
Depois desses atendimentos essa mulher passa a se relacionar diferente com o marido não aceitando mais se anular e buscar a aprovação dele a qualquer custo e saindo da necessidade de se provar como vítima e inocente das situações na vida como um todo. A auto estima sobe, a força de vida aparece e a clareza sobre os próprios desejos são a chave para conseguir impulso para essa transformação tão importante para a vida dessa mulher e filhos.
*Vanessa Cesnik é doutora em Psicologia pela USP e Co-fundadora do grupo "O Corpo Explica"
Mulheres vítimas de violência doméstica devem denunciar seus agressores e pedir medida protetiva. É possível denunciar pelo disque 100 ou pedir ajuda pelo whatsapp da Promotoria de Justiça da Casa da Mulher Brasileira de São Paulo: (11) 96600-8506 (no primeiro contato a mulher não necessariamente precisa se identificar)
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