A vacina não é só técnica e científica, mas é também política
Marina Helou e Dr. Renato Kfouri* Publicado em 22/02/2022, às 08h00
Vivemos no país uma situação desafiadora para contenção e minimização dos impactos da pandemia da Covid-19. Pesquisas estimam que a atual variante Ômicron possui capacidade de propagação muitas vezes maior do que outras variantes, como a Delta. No que diz respeito às crianças, a ocorrência de eventos graves relacionados à doença, vem aumentando no Brasil. Por ser o último grupo etário a ser vacinado, elas representam hoje o grupo de maior vulnerabilidade. Vemos crescer em proporções preocupantes as internações de crianças, que é ainda maior no grupo de 0 a 4 anos (ainda não elegível para vacinação).
Oficialmente, o país registrou 1.544 óbitos de crianças entre 0 e 11 anos por Covid desde o início da pandemia. Estimativas, porém, apontam que o total de mortes pode chegar a 4.081 se considerarmos as subnotificações. Conforme relatório do balanço de dois anos da pandemia da Fiocruz, a proporção de 0 a 9 anos, em internações na UTI em relação ao total de internados, aumentou cerca de cinco vezes se compararmos as semanas do início deste ano com o primeiro semestre do ano passado.
Em que pese a vacinação de crianças de 5-11 anos tenha sido aprovada pela Anvisa e iniciada no começo deste ano, ainda há dúvidas e resistência, por parte de muitas famílias, quanto à eficácia e segurança da vacina. Na era da informação, reinam inúmeras notícias falsas, desinformação e desarticulação política sobre a pauta, sendo compreensível que muitos familiares e cuidadores fiquem inseguros e hesitantes.
Apesar da política pública de vacinação ser uma das mais antigas do Brasil e importante para assegurar o direito à saúde, à vida da população e à dignidade humana, inúmeras polêmicas pairam sobre ela. O resultado disso é que, até o dia 14 de fevereiro deste ano, apenas 21% das crianças de 5 a 11 anos tomaram a primeira dose da vacina. O relatório da Fiocruz também aponta que a cobertura vacinal de crianças é menor onde há maior desigualdade de renda e pobreza. Estes resultados não impactam apenas a saúde pública, mas também o retorno seguro das crianças às escolas.
Nesse contexto, é papel da política, junto com a ciência, promover ações articuladas e campanhas em prol da vacinação e da informação, priorizando territórios mais vulneráveis. Precisamos garantir que sejam assegurados os direitos das crianças que envolvem saúde, a garantia ao direito à educação e convivência social com segurança. A política de educação foi extremamente afetada na pandemia impactando o desenvolvimento das crianças e acentuando desigualdades históricas relacionadas ao acesso e à qualidade da educação. Quando falamos de vacina, estamos também falando de cidadania. É fundamental pensarmos na vacina de forma coletiva.
A saúde é um direito fundamental social, inserido na Constituição Federal e assegurado como “direito de todos e dever do Estado, garantido por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Mesmo com muitos avanços nas pesquisas, tanto no Brasil quanto no mundo, ainda temos no país uma pequena parcela da população que é contrária à vacinação, principalmente, porque temos um presidente que discursa contra a imunização.
Foi, porém, por meio da vacinação que eliminamos inúmeras doenças e que agora possibilitou a diminuição do número de mortes e casos graves decorrentes da Covid-19. O Brasil também possui um Programa Nacional de Imunizações (PNI) consolidado, que oferta vacinas com qualidade a todos e apresenta elevado grau de cobertura vacinal. Embora seu sucesso seja reconhecido internacionalmente, ainda assim é colocado à prova.
Nesse difícil cenário, resguardar o direito das crianças passa pelo reconhecimento da população que a decisão de vacinar ou não os seus filhos não é uma mera decisão de aspecto individual e subjetivo, pois os efeitos da decisão repercutem para toda sociedade. Quando crianças não são vacinadas, cria-se um grupo mais suscetível a contrair a Covid-19. Como apenas este grupo não está imunizado, ele se torna especialmente vulnerável à infecção e à disseminação do vírus, inclusive para outras faixas etárias.
A Anvisa, órgão responsável por autorizar o uso da vacina, é uma agência que possui independência administrativa e financeira. O processo de avaliação da vacinação infantil contou com a consulta e o acompanhamento de um grupo de especialistas em pediatria e imunizações, com contribuições da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Ainda, é importante lembrar que a vacina da Covid-19 não tem caráter experimental, passou por uma ampla gama de testes no mundo, sendo também considerada segura para o público de 5 a 11 anos. Destaca-se que as principais agências reguladoras do mundo também se posicionaram, de forma unânime, a favor da vacina.
O perigo de não tomar a vacina é maior do que o relacionado aos raríssimos eventos adversos. Sabe-se que alguns raros eventos graves podem ocorrer após a vacinação: reação alérgica (anafilaxia) e miocardites são os que têm merecido maior destaque. O risco, no entanto, de anafilaxia é semelhante ao de outras vacinas do calendário infantil ou de qualquer medicação. As taxas de miocardite, segundo dados americanos, são extremamente baixas (cerca de 40 casos para cada um milhão de doses aplicadas). Importante destacar que o risco de miocardite pela doença do novo coronavírus é superior ao risco do evento pós-vacina e, até o presente momento, não há nenhum óbito no mundo relacionado a este evento adverso.
Covid é risco para as crianças e a vacinação é fundamental para prevenir casos graves e mortes; evita dor, sofrimento, sequelas e complicações (Covid longa e a síndrome inflamatória multissistêmica, por exemplo). A vacina também reduz a transmissibilidade da doença, ajudando na imunização indireta, tendo efeitos positivos para toda sociedade. Isso significa que vacinar crianças pode ajudar a proteger os membros da família, incluindo irmãos que não são elegíveis para a vacinação.
Ainda, a vacinação permite um retorno mais seguro das crianças à escola e ao convívio social. Quanto mais crianças vacinadas na sala de aula, menor o risco de infecção para toda a comunidade escolar. Lembrando que a pandemia impactou severamente a educação. A ausência de convívio social e escolar impactam o desenvolvimento cognitivo, emocional e a aprendizagem - situação que provoca inúmeros prejuízos individuais e sociais de curto, médio e longo prazo.
Um levantamento divulgado pela ONG Todos Pela Educação apontou que 40% das crianças de 6 a 7 anos no Brasil não sabem ler e escrever, este percentual representa um aumento de 60% de não alfabetizados quando comparado com 2019, sendo a situação decorrente da pandemia. O levantamento também apontou que a desigualdade educacional entre crianças negras e brancas se agravou nos últimos dois anos. Além disso, a pandemia aumentou a evasão escolar. Os dados mostram a urgência do retorno escolar, e a vacinação das crianças deve fazer parte da estratégia de segurança das mesmas e dos demais membros da comunidade escolar. Nesse sentido, são bem-vindas mutirões de vacinação nas escolas.
Por fim, vale destacar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que é obrigatória a vacinação de crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias (art.14, §1) e, neste caso, todas autoridades recomendaram a imunização. Se nossa Constituição estabelece que as crianças são prioridade absoluta no que tange à garantia da saúde, que é um direito fundamental - o Ministério da Saúde deveria agora considerá-la obrigatória.
É necessária ampla divulgação sobre a importância, os benefícios e a segurança das vacinas contra a Covid-19, ação que deveria ser protagonizada pelo Ministério da Saúde. É importante que o Governo Federal exerça seu papel, por meio de campanhas de conscientização.
Na ausência desse protagonismo, todos nós, órgãos públicos, políticos, especialistas e famílias precisamos fazer um esforço coletivo, ainda maior, para reforçar a segurança da vacina e a credibilidade dos órgãos envolvidos em sua aprovação. É também urgente realizarmos buscas ativas para convencer pessoas que ainda não iniciaram seus esquemas vacinais. Cada decisão individual impacta toda a coletividade. Sendo, assim, uma questão coletiva, a vacina não é só técnica e científica, mas é também política.
*Marina Helou é mãe do Martin e da Lara, Deputada Estadual em São Paulo pela Rede Sustentabilidade e Presidente do Comitê Paulista pela Prevenção de Homicídios na Adolescência do Estado. Administradora Pública, formada pela EAESP-FGV (Fundação Getúlio Vargas) e especialista em negócios e sustentabilidade pela Fundação Dom Cabral/Cambridge University.
*Dr. Renato Kfouri é pai da Mariana e Luciana, pediatra infectologista, presidente do Departamento de imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações, membro da Câmara técnica assessora do programa Nacional de imunizações.
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