Roberta Manreza Publicado em 02/03/2016, às 00h00 - Atualizado às 11h10
Por Enciclopédia sobre o Desenvolvimento na Primeira Infância / Portal EBC
Ao longo do desenvolvimento, as áreas do cérebro não maturam ao mesmo tempo. Por exemplo, a percepção auditiva começa antes do nascimento. O cérebro de um recém-nascido já é capaz de reconhecer vozes e melodias familiares ouvidas no período fetal. Ao contrário, as áreas do cérebro envolvidas na memória declarativa (“as lembranças”) e a visão não estão maduras no nascimento. Para se desenvolver totalmente, esses sistemas, incluindo o córtex auditivo, precisam da estimulação que ocorre depois do nascimento.
Um aspecto importante do cérebro de um recém-nascido é a sua capacidade de mudança. Com a maturação, o cérebro se torna menos plástico; por exemplo, ao final do primeiro ano de vida, as áreas do cérebro que diferenciam os sons se tornam especializadas em função da língua que o bebê ouve. Ao mesmo tempo, o cérebro já começa a perder sua capacidade de reconhecer sons que pertencem a outras línguas.
Com o aparecimento das técnicas de imagem que nos permitem ver imagens estruturais do cérebro (imagem por ressonância magnética [IRM]), medir a atividade cerebral (IRM funcional [IRMf]) em pessoas vivas e, mais recentemente, detectar mudanças na microestrutura da substância branca (imagem por tensor de difusão [ITD]), foram realizados muitos estudos para explorar mudanças anatômicas do cérebro e tentar ligá-las às alterações comportamentais. Como essas técnicas não são invasivas, elas podem ser utilizadas para estudar o desenvolvimento do cérebro e os efeitos de experiências sobre esse órgão.
Os resultados de um estudo recente sobre crianças pequenas mostrou que o volume total do cérebro aumenta em 101% ao longo do primeiro ano de vida, e mais 15% durante o segundo ano. Ao longo do primeiro ano, o crescimento mais importante é da substância cinzenta (149%), o aumento da substância branca sendo bem menor (11%). O volume do cerebelo aumenta em 240% durante o primeiro ano, enquanto que os hemisférios cerebrais aumentam em 90%. Dos 3 aos 30 anos de idade, o volume da substância branca aumenta enquanto que o da substância cinzenta vai aumentando e depois, diminuindo, atingindo seu máximo em um momento específico para cada área do cérebro ao longo da infância e da adolescência. Simultaneamente, as conexões entre as áreas do cérebro aumentam, ao mesmo tempo estrutural e funcionalmente, e o equilíbrio entre as funções límbicas/subcorticais e do lóbulo frontal se modifica até o início da adolescência. Além disso, estudos realizados por imagem genômica indicam que os genes estão envolvidos na formação do cérebro. Estudos realizados em gêmeos adultos, crianças e adolescentes mostram uma forte hereditariedade no volume medido em diversas regiões da substância cinzenta.
O estresse tóxico precoce pode também afetar o volume do cérebro. Modelos animais mostraram que a amígdala, o córtex pré-frontal e o hipocampo sofrem uma reorganização estrutural causada pelo estresse, que altera as respostas comportamentais e fisiológicas, incluindo ansiedade, agressão, flexibilidade mental, memória e outros processos cognitivos. Cada vez mais, as pesquisas feitas com seres humanos sugerem que estressores precoces severos (por exemplo, traumatismos, maus-tratos, negligência) podem provocar uma diminuição do volume do cérebro. Todavia, muitos estudos científicos sustentam a conclusão de que estimular relações de ajuda e de atenção logo na primeira infância pode prevenir ou reverter os efeitos prejudiciais do estresse tóxico.
O registro da atividade elétrica do cérebro é um método mais antigo que as técnicas de imagens; contudo, ele permite aos pesquisadores obter potenciais relacionados a eventos (PRE), que são potenciais elétricos no cérebro em resposta a estímulos específicos. Estudos em bebês sobre PRE ligados à atenção revelaram um componente central negativo (Nc) cuja amplitude é maior quando o ritmo cardíaco indica atenção.
Ao longo dos primeiros meses de vida, o sistema visual ainda está se desenvolvendo. A visão dos recém-nascidos é principalmente controlada no nível subcortical, e o córtex começa a maturar cerca de dois meses após o nascimento. Como os componentes dos seus olhos ainda estão imaturos, o bebê é moderadamente hipermetrope. A atenção visual e a procura visual começam aos três meses; o bebê começa a associar os estímulos visuais a um evento (por exemplo, a mamadeira e a alimentação). Resultados obtidos utilizando variantes de um teste de orientação visual simples conhecido como “gap task” indicam que a operação de desengajamento da atenção visual começa a funcionar entre os três e quatro meses de idade. Antes dos quatro meses, os bebês conseguem focalizar sua atenção de maneira seletiva, porém, uma vez sua atenção ligada a um estímulo específico, eles têm dificuldade em desengajar sua atenção e focá-la em outro lugar. Eles tendem mais a fixar sua atenção por longos períodos.
O córtex auditivo segue uma trajetória de desenvolvimento muito longa, e as respostas a sons simples só se tornam completamente maduras por volta dos 18 anos. Ao mesmo tempo, é possível medir as respostas do cérebro a mudanças ocasionais em um estímulo auditivo repetitivo em bebês de 2 meses.
Mudanças espetaculares nas áreas do cérebro envolvidas na memória ocorrem ao longo dos dois primeiros anos da vida. Para avaliar a memória declarativa (“as lembranças”) em crianças em idade pré-verbal, os pesquisadores utilizaram a imitação provocada (mostra-se uma ação aos bebês [por exemplo, tocar um sino] e dá-se a eles a oportunidade de imitar essa ação). As melhorias da memória com a idade são coerentes com o desenvolvimento do cérebro.
Depois de o bebê nascer sem problema, nem ao longo da gravidez, nem durante o parto, o seu cérebro em desenvolvimento é moldado pelas interações entre as influências dos genes e da experiência. A arquitetura do cérebro vai se formar como esperado se os pais e cuidadores responderem atentamente às interações iniciadas pela criança. As relações de cuidados durante os primeiros anos favorecem a saúde física e mental, bem como o aprendizado ao longo de toda vida. Os cuidados assistenciais dos adultos, atentos e sensíveis, são necessários não apenas ao desenvolvimento ótimo do cérebro da criança; eles também protegem o cérebro em desenvolvimento dos efeitos potencialmente prejudiciais dos estressores. Além disso, se o cérebro de um bebê já foi afetado por estresse tóxico, evidências científicas mostram que relações cheias de apoio e de atenção o mais cedo possível na vida do bebê podem prevenir e também reverter os efeitos prejudiciais do estresse tóxico.
Ainda existem poucos estudos sobre o impacto da experiência sobre a maturação do cérebro ao longo do desenvolvimento e vice-versa. Da mesma maneira, a neurobiologia dos adolescentes tem sido pouco estudada. Em consequência, ainda não é possível entender toda a complexidade dessa questão. A hipótese segundo a qual as modificações da estrutura do cérebro durante seu desenvolvimento seriam pré-requisitos para uma capacidade cognitiva específica pode não se confirmar, uma vez que o papel da experiência na formação do cérebro pode ser mais importante do que o previsto. Os dados fornecidos pelas imagens vêm se somar a informações genéticas, observações comportamentais, antecedentes familiares, análises de sangue, e muito mais. Essa abundância de informações ultrapassa aquilo que os pesquisadores têm atualmente condições de entender e são, portanto, necessárias novas metodologias bioinformáticas e estatísticas para compreender melhor quais são as informações mais relevantes para cuidar dos pacientes.
São necessários mais estudos sobre o estresse tóxico precoce para esclarecer os efeitos do estresse vivenciado durante a infância sobre as estruturas e os processos do cérebro. Nesse campo, falta também uma compreensão adequada das variações genéticas entre as crianças, que moderam a reatividade, a regulação e o impacto das reações ao estresse.
Futuras pesquisas deveriam analisar os impactos de diversos tipos de traumas em diferentes etapas do desenvolvimento, no intuito de identificar as fontes da variabilidade dos resultados. Além disso, a medição do nível de cortisol na saliva (uma medição não invasiva dos efeitos do estresse crônico) deu um impulso à pesquisa sobre o sistema neuroendócrino envolvido nas reações ao estresse, isto é, o eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal (eixo HHS) (ou eixo do hormônio do estresse).
Para determinar as áreas do cérebro que são as causas prováveis dos potenciais relacionados a eventos medidos no couro cabeludo, os pesquisadores utilizam as análises de dipolos de corrente equivalente (DCE), que fornecem uma medição mais direta da atividade cerebral do bebê envolvida na atenção. Entretanto, os parâmetros utilizados nas análises DCE são baseados na anatomia adulta (por exemplo, a espessura do crânio e do couro cabeludo). Como o crânio do bebê é mais fino que aquele dos adultos, e que as fontanelas e as suturas do crânio ainda não estão totalmente fundidas, há espaço para melhorias nesses testes.
Os problemas de desengajamento da atenção visual que, muitas vezes, se traduzem nos bebês por uma fixação visual demorada e altos níveis de desamparo, são muito preocupantes e desafiadores para os pais. Eles devem ser detectados desde cedo e considerados como sinais para encaminhar os bebês para cuidados específicos.
A experiência visual é essencial para que a visão da criança se desenvolva normalmente — uma situação do tipo “use-a ou perca-a”. O tratamento das doenças oculares comuns em crianças deveria começar bem mais cedo do que a prática comum preconiza.
A resposta do cérebro a um estímulo sonoro (o potencial auditivo relacionado a eventos [PAE]) poderia ser utilizada para os bebês como indicador para o diagnóstico de anomalias precoces no desenvolvimento auditivo central. As PAE constituem um método excelente para estudar o desenvolvimento auditivo precoce e a maturação do córtex auditivo. O aprendizado passivo, por exemplo, aprender a partir de cassetes ou de brinquedos que falam, constitui um dos métodos propostos para remediar os problemas de percepção das palavras e da aquisição da linguagem.
Aprender como funciona a memória e o desenvolvimento do cérebro dos bebês vai exigir mais estudos com seres humanos, pois no momento, muitas informações têm origem em modelos animais (roedores e primatas não humanos).
À medida que formos aumentando nossa compreensão das relações entre o cérebro e o comportamento, teremos mais condições de elaborar intervenções para ajudar os bebês e as crianças dos grupos de risco (por exemplo, os bebês nascidos de mães com problemas de controle de açúcar no sangue durante a gravidez, bebês adotados de orfanatos internacionais e bebês prematuros saudáveis).