O psicanalista Paulo Bueno, colunista do Papo de Mãe, nos traz uma crônica sobre o natal que passou
Paulo Bueno* Publicado em 04/01/2022, às 11h39
No natal passado meu filho cismou que queria ganhar um videogame. Desenhou o aparelho, os joysticks e a televisão em sua cartinha, com toda a esperança de quem crê que se portou bem ao longo do ano. Entretanto, o garoto desconhecia que o Papai Noel possui profunda inaptidão em matéria de decodificação de traçados e rabiscos. Acabou presenteando-lhe com um carrinho de controle remoto infinitamente mais barato que o Play Station 4.
Me compadeço das crianças que – por não escreverem – ficam submetidas aos arbítrios da interpretação de seus desenhos. Neste ano, receoso de nova frustração, Pedro apurou suas habilidades gráficas e como prêmio o bom velhinho lhe deu o brinquedo correspondente àquele desenhado na carta: um Bayblade (que curiosamente também é mais barato que o videogame). Começo a desconfiar que ele só entrega presentes abaixo de cem reais.
Por sorte, Pedro tem avós e tios, muito mais dadivosos que aquele velhote muquirana. É de uma generosidade de transbordar os bolsos. Ano que vem penso seriamente em decorar a casa com fotos de parentes, tudo personalizado: toalha de mesa, guardanapos, souvenirs e os penduricalhos da árvore. Me soa injusto que o Papai Noel, com um mísero Bayblade, tenha sua imagem estampando a mesa da ceia e receba mais homenagens do que aqueles que lhe deram tablet, bicicleta, videogame e lego (muitos legos).
Neste ano mantivemos os enfeites tradicionais, com pinheiros, renas e ilustrações do velho finlandês. Ao invés do sapatinho, o garoto ofereceu suas havaianas para que se deixasse o presente. Trilha sonora, tradicionalíssima: o álbum que Simone gravou com temas natalinos. Brega? Sim. Para alguns a música é uma Ferrari. A pessoa já vai com empolgação querendo saber de todas as especificações técnicas do veículo, mergulhando na sofisticação harmônica, improvisos imprevisíveis, e compassos compostos. Para mim, a música é aquele carro quadradinho do filme De volta para o futuro, não precisa brilhar os olhos, mas uma vez que nele se entre, você pode ser conduzido tanto a cenários do passado, como a um difuso porvir.
Assim que escutei “Então é natal” fui pros anos noventa, quando meu pai colocava esse álbum na vitrola das 10 da manhã até as 2 da madrugada. O cheiro de comida também varava o dia. O empenho de minha mãe na preparação da ceia era notável. Meus irmãos e eu esperávamos ansiosos o relógio bater meia-noite, para comer e visitar os vizinhos. Dique, nosso vira-lata caramelo, não tinha tanta ânsia por esse momento, em que, faminto, assistiria seus humanos se empanturrarem e, amedrontado, se esconderia em sua casinha ao som dos rojões (Natal? Réveillon? Já não lembro).
A princípio, me pareceu uma boa ideia ter colocado um sonzinho. Porém, rapidamente percebi que dedicaríamos uma parte significativa da noite na tentativa de explicar ao garoto algumas figuras cantadas por Simone – nomes e expressões que, talvez, ele nunca havia escutado, como Jesus de Nazaré, festa cristã e rezar. Tive que informar quem foi o tal do Deus-menino que veio para o nosso bem, além – é claro – de expressões pagãs, como Harehama, Hiroshima, Nagasaki e Mururoa-amém.
A grande descoberta da noite, entretanto, foi quando constatou que a letra que aprendeu com Renato, um coleguinha da escola, é diferente daquela cantada por Simone. Os olhos arregalaram quando ouviu a melodia de “Bate o Sino” com uma letra por ele definida com “estlanha”. Pedi para que cantasse a versão que conhecia, e ele soltou a voz: “Jingle bell, jingle bell, acabou o papel, não faz mal, não faz mal, limpa com jornal. O papel tá calo, calo pla chuchu, como eu vou fazer pla limpar meu blaço”. Braço?! Deixo aqui registrado que essa censura não partiu do autor da crônica, tampouco da redação deste veículo de comunicação; transcrevo exatamente aquilo que Pedro cantou. Os censores, suponho, são os pais de Renato, que devem ter proibido o garoto de cantar a versão original da paródia. Esa nova versão impõe uma escolha difícil, pois “chuchu” não rima com “braço”, se perde em musicalidade e se ganha em decência. Confesso que esse desfecho me agrada.
Pela manhã, acordo com os pulos de Pedro por cima de mim e com uma embalagem dourada: “papai, papai, o Papai Noel tlouxe o bayblade que eu pedi”. A música de Simone, a partir de agora, será o Delorean que além de me conduzir aos tempos de meus pais, me levará ao sorriso de Pedro. Me vejo, já velhinho, escutando as músicas de Simone, recordando das manhãs em que Pedro pulava em nossa cama, feliz com os presentes de menos de cem reais deixados em seu chinelo pelo velho mão de vaca.
*Paulo Bueno: Pai do Pedro, de 5 anos. Psicanalista, mestre e doutor em Psicologia Social pela PUC-SP e docente do Instituto Gerar Psicanálise, Perinatalidade & Parentalidade.