Roberta Manreza Publicado em 10/07/2016, às 00h00
Por Rodrigo Simon, jornalista
Foi em uma manhã de sábado.
Não posso dizer que era um dia especialmente animado, afinal, eu passaria a tarde com ela em uma UTI. Mas era, sim, um sábado cheio de esperanças.
É que, um dia antes, o médico havia me dito que ela deveria voltar para o quarto já no fim de semana. Respirei aliviado. Parecia ter sido apenas mais um entre os muitos sustos nos últimos quatro anos de tratamento contra um linfoma.
Em O Estrangeiro, de Camus, Meursault recebe um telegrama do asilo. No meu caso, foi um e-mail do hospital. A mensagem pedia que eu telefonasse com urgência.
Comecei a desconfiar que algo tinha dado errado quando a atendente, pelo telefone, me disse que só pessoalmente poderia me contar o que havia acontecido. Perguntou se eu poderia ir até lá levando uma troca de roupa. Será que é por que ela vai sair da UTI? Ela estava melhorando, tinha garantido o médico. Insisti com a atendente.
– Ela entrou em óbito, senhor.
Fiquei só como nunca estivera antes. Ou como disse Barthes: “doravante e para sempre sou eu próprio a minha própria mãe”.
O escritor francês iniciou um Diário de luto no dia seguinte ao da morte de sua mãe, em outubro de 1977. Nele encontro a mais simples e perfeita definição da solidão causada pela ausência da mãe: “não ter ninguém em casa a quem se possa dizer: volto a tais horas ou a quem poder telefonar (dizer): cá estou, já voltei”.
Eu não comecei um diário, mas naquela manhã de sábado morri pela primeira vez.
A caminho do hospital, me perguntava como todos seguiam normalmente com suas vidas se ela estava morta.
Logo depois do enterro, alguém me perguntou do que eu mais sentiria falta em minha mãe. Da comida que ela preparava? De ter sempre um teto a me esperar, se tudo desse errado? Não. Eu sentiria falta do cheiro dela. As roupas que ela deixou só fariam enganar o olfato. O cheiro da minha mãe morreu com ela. Naquele sábado, o mundo seguia, mas tinha acabado.
Lena foi a melhor mãe do mundo. Acredite em mim, assim como acreditarei em você se me disser que a sua foi a melhor mãe do mundo.
Em uma foto, vejo uma tatuagem especialmente popular nos presídios. Em um coração atravessado por uma flecha, a frase: “amor só de mãe”. Talvez os presos já conhecessem a crônica Lembranças da minha mãi, publicada por Machado de Assis na Revista Luso-Brasileira em 1860. Em grafia da segunda metade do século XIX, Machado fala do sofrimento por perder a mãe aos nove anos de idade: “Uma mãi!!…Único ente que nos ama no mundo, que compreende nossas dôres, que soffre quando soffremos, que chora quando nossa alma é triste”.
Pensei em não sofrer, para que minha mãe não sofresse pela minha dor.
Em uma canção, Cazuza diz que Só as mães são felizes. Não: “a mãe só é feliz quando o filho é feliz. Então não existe só mãe feliz, existe filho feliz e mãe feliz”, garante a mãe de Cazuza.
Tento acreditar que “só as mães morrem felizes”. Paradoxal essa vida (e essa morte) de mãe. Morrem sofrendo pela dor do filho, mas felizes por serem ela a morrer, não ele.
Ruim, eu sei, falar de morte em um domingo. Mas é que hoje faz um ano que minha mãe se foi para nunca mais voltar.
Falo de tudo isso em busca de um consolo impossível. Mas também para que nossa única certeza, a morte, não seja esquecida. É que, assim, ao nos lembramos da ausência inevitável e inefável, poderemos viver mais intensamente a presença que é tão real. Que o amor por nossas mães inspire cada minuto com nossos filhos.
Neste domingo, irei ao cemitério. Tentarei me consolar pensando que a vida poupou minha mãe da tristeza de Ferreira Gullar em Visita ao túmulo do filho morto, quando “diante bloco negro de pedra impenetrável entendeu que nunca mais poderia alcançá-lo”. Olhando para a foto no túmulo, em que ela está mais linda do que nunca, trocarei de poeta e pensarei em Drummond, pois “mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não apaga”.
Rodrigo Simon é jornalista, com passagem pelas redações da CBN, Bandnews e TV Cultura. Mestre em Letras pela USP, é doutorando em Teoria e História Literária pela Unicamp.
Assista ao Papo de Mãe sobre perdas.