Hoje, como diretora pedagógica, procuro refletir sobre a importância da brincadeira em toda a escolaridade
Ana Paula Yazbek* Publicado em 05/05/2021, às 00h00 - Atualizado às 09h59
Gostaria de começar esse texto convidando você, leitor, a lembrar das suas brincadeiras de escola: com quem brincava? Do que brincava? Onde brincava? Quando brincava? Que brincadeiras foram mais marcantes? E dos riscos e acidentes? Guarda alguma cicatriz? Sempre brinquei bastante na escola. Gostava muito de ficar no tanque de areia, construir castelos, fazer rios, buracos que se tornavam túneis subterrâneos para tocar as mãos dos meus colegas. Havia pelo espaço da escola alguns túneis de concreto coloridos em vermelho e amarelo, daqueles utilizados para águas pluviais ou esgoto. Gostava de ficar dentro, subir, chamar outras crianças para criarmos histórias e aventuras. As brincadeiras de pega-pega, polícia e ladrão faziam com que corresse e sentisse meu coração saindo pela boca. A brincadeira de meninas perdidas, na qual imaginávamos uma ilha no jardim circular, era minha preferida. Inventávamos enredos como se fossemos adolescentes, sem pai e mãe, e tivéssemos que passar o dia, às vezes semanas, num lugar inóspito. Lembro-me da Sissi, minha professora do 5º. Ano. Na nossa classe tinha uma pequena antessala e Sissi a arrumou com almofadas, livros, gibis e plantas. Quando terminávamos o que tínhamos que fazer, podíamos ficar nesse ambiente, bem mais interessante que as mesas e cadeiras das lições.
Estas e outras lembranças que não cabem nesse texto, influenciaram a minha personalidade. É curioso que guardo menos recordações do que estudávamos, do que das brincadeiras e dos momentos compartilhados com meus amigos e amigas. Hoje, como diretora pedagógica, procuro refletir sobre a importância da brincadeira em toda a escolaridade. É óbvio que a função social da escola é propiciar o domínio da leitura, da escrita, da matemática, das ciências humanas, sociais, da arte, das linguagens. Porém, acredito que a brincadeira desempenha um papel importantíssimo para a formação integral dos estudantes. E não me refiro apenas às crianças, mas também aos adolescentes e jovens. Para que fique claro o que estou querendo dizer como brincadeira, é interessante localizar alguns pontos. Considero brincadeira aquilo que se realiza de corpo inteiro, ou seja, com muita entrega, disponibilidade, prazer e de forma integral. A mão que mexe é tão importante como o cérebro que pensa, ambos são corpo. Considero brincadeira quando há autonomia e escolha, ou seja, quando os alunos e alunas não são direcionados e controlados externamente para dar as respostas que os educadores esperam. Considero brincadeira quando há desafios e possibilidades em aberto, permitindo que sempre se descubra o inusitado, a surpresa.
A escola sempre teve dificuldade de se relacionar com a brincadeira, o jogo. Um dos motivos foi a necessidade de se manter a ordem e o progresso, a disciplina, a fragmentação do conhecimento. Mas a brincadeira, ainda que contida, sempre esteve lá, seja na hora do recreio, no parque, no tanque de areia. Em alguns momentos, a escola se aproximou do brincar de forma equivocada, disfarçando as atividades em brincadeiras, acreditando que desta forma as crianças aprenderiam os conteúdos “mais facilmente”. Ledo engano, elas sabem diferenciar o que é brincar e o que é aprender. E é justamente esse ponto que gostaria de tratar. O que se aprende quando se brinca na escola? Se for para aprender forma geométrica, letras, palavras e cores, é melhor não brincar. Usar a brincadeira como artifício pedagógico de conhecimentos que são aprendidas nos seus contextos de uso, é um desperdício. Na minha opinião, quando se brinca na escola aprende-se a interagir com o mundo, com as pessoas, com a funcionalidade dos objetos (caixas, pedras, gravetos etc.), dos espaços (pátios, quadras, rua, terra, tanque de areia), das regras (o que pode ou não) e do corpo em movimento (saltos, giros, equilíbrios, lançamentos, corridas etc.). A brincadeira é o melhor instrumento para a criança interagir com a cultura de forma ativa, protagonizando o seu conhecimento.
Talvez você se pergunte: E os adolescentes e jovens? Eles também brincam? Certamente, mas suas brincadeiras acompanham suas formas abstratas e hipotéticas de interagir e pensar sobre o mundo, indo além do simbólico e concreto das crianças. Cabe às escolas, que estiverem dispostas a não permanecerem iguais às do século XX, descobrir e assegurar formas mais lúdicas e criativas de se relacionar com o conhecimento.
*Ana Paula Yazbek é pedagoga formada pela Faculdade de Educação da USP, com especialização em Educação de Crianças de zero a três anos pelo Instituto Singularidades; iniciou mestrado na FEUSP em 2018 e está pesquisando sobre o papel da educadora de bebês e crianças bem pequenas.
É sócia-diretora do espaço ekoa, escola que atende crianças de toda Educação Infantil (dos 0 aos 5 anos e onze meses). Além de acompanhar o trabalho das educadoras, atua em cursos de formação de professores desde 1995 e desde 2002 está voltada exclusivamente aos estudos desta faixa etária.