Mais de 5 mil prefeitos eleitos em 2021 receberam recomendações sobre a importância das políticas voltadas a cuidados básicos para a primeira infância
Ana Beatriz Gonçalves* Publicado em 10/03/2021, às 00h00 - Atualizado às 12h13
Cuidado, afeto, nutrição, brincadeiras, segurança e educação. É difícil imaginar outras palavras quando a pergunta é: “O que uma criança precisa para ter uma vida plena e saudável?”. Esse copilado de práticas é, de acordo com os cientistas e organizações de saúde, o pilar que deve-se ter durante a primeira infância, período que perpassa o nascimento até os 6 anos de idade. Sabendo disso, outra pergunta surge: o Brasil está olhando com a devida atenção para esta questão?
Na opinião da UNICEF (Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância), o país tem uma das “legislações mais avançadas do mundo” no que diz respeito à proteção da infância, no entanto, isso não é o suficiente. Para colocá-las em prática, as políticas públicas são instrumentos imprescindíveis que garantem, de fato, que a primeira infância seja prioridade nos planos políticos.
Especialista em gestão pública com passagem pela Secretaria Municipal do Recife, Rogério Moraes, atual Diretor Executivo do PIPA (Primeira Infância, Plantar Amor), reconhece que o assunto cresceu, principalmente após a sanção do Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/2016). “Depois disso os municípios começaram a se desdobrar para além do regional. Mas o tema é recente e é fundamental que a sociedade civil organizada defenda o assunto”, explica Rogério ao Papo de Mãe.
Apesar de pouco conhecida pela grande parcela da sociedade, existe uma lei que defende os cuidados básicos para a primeira infância. Há cinco anos na legislação, o Marco Legal, projeto do deputado Osmar Terra (MDB-RS), só aconteceu após um esforço amplo da Frente Parlamentar da Primeira Infância para tornar o debate público.
Entre os tópicos defendidos pela lei, estão; a instituição dos direitos e responsabilidades iguais entre mães, pais e responsáveis, ampliação da licença-paternidade para 20 dias, qualificação dos profissionais sobre as especificidades da primeira infância, e a formatação de políticas públicas. Esta última faz parte de um plano intersetorial que já existe no âmbito municipal pela sigla PMPI (Plano Municipal pela Primeira Infância).
Focada em “traduzir o conhecimento científico para incorporar políticas”, a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, instituição que há 14 anos reforça a implementação de políticas públicas voltadas para a primeira infância, se dedicou para informar políticos sobre a importância da causa em 2020.
Em entrevista ao Papo de Mãe, Heloisa Oliveira, Diretora de Relações Institucionais, explica o motivo pelo qual a Fundação realiza diversos trabalhos principalmente em anos de eleição. “Precisamos aproveitar a janela de oportunidade para sensibilizar os candidatos sobre os planos de primeira infância.”
No dia 1º de fevereiro de 2021, 5.570 municípios brasileiros deram início a uma nova gestão municipal com os prefeitos eleitos, sendo que 3.968 deles elegeram candidatos pela primeira vez. O fato chamou atenção da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. Isso porque no caso de novas gestões, não há um projeto em continuidade, e sim novas equipes e um espaço para propor a pauta da primeira infância.
Com intuito de sensibilizar e informar, a Fundação divulgou a série “100 dias: Os primeiros passos pela primeira infância”, que propõe recomendações aos candidatos com quatro guias essenciais para a implementação das políticas públicas. “Os guias focam em ações básicas e estruturais que precisam ser iniciadas nos primeiros dias do governo, já que esse primeiro período é muito importante para a definição do que ocorrerá no resto da gestão”, afirma Heloisa.
No entanto, apesar do seu nome “datado”, o copilado que junta quatro guias da campanha Primeira Infância Primeiro No Município, disponibilizados pela Fundação ainda em 2020, é de extrema utilidade para o futuro. “É claro que se até lá tiver alguma alteração legal, ele [documento] vai precisar ser atualizado, mas deve servir para os futuros prefeitos também”, diz a diretora.
O material enviado aos mais de cinco mil municípios brasileiros é dividido em quatro guias, presentes também na plataforma Primeira Infância Primeiro, que traz dados sobre cobertura de creche, mortalidade infantil, gravidez na adolescência, entre outros dados que totalizam mais de 30 indicadores de cada região.
Cada um dos guias apresenta caminhos traçados de recomendações práticas que fortalecem um olhar mais atento à primeira infância, sendo eles:
1º Guia de Educação: questões de acesso, prestação de contas do FUNDEB, os caminhos para expandir oferta, gestor olhe como está sua rede de atendimento, e qualidade do ensino;
2º Guia de Saúde: como fazer buscas das informações relevantes, estabelecer metas para cada indicador, elaborar um Plano Municipal de Saúde, implementar um sistema de registro dos marcadores do desenvolvimento infantil e programas de atenção à gestante;
3º Guia da Gestão e Orçamento: como fazer o planejamento e implementação das políticas de forma intersetorial, elaborar um Plano Municipal da Primeira Infância, e detalhes do orçamento que o gestor precisa fazer;
4º Guia Parentalidade: recomendações da pasta de Assistência Social, programas e ações voltadas aos pais e cuidadores, mapear inciativas e serviços às famílias, monitorar e estabelecer prioridades.
Heloisa Oliveira reforça que a intenção da Fundação, ao disponibilizar o material, é um apelo para que os gestores públicos entendam a necessidade de implementar políticas públicas efetivas para a primeira infância, que um dia vão reverberar em uma sociedade mais desenvolvida.
“A dinâmica que adotamos foi a de disponibilização da plataforma e todo o material de pesquisas. Fizemos uma carta individual a todos os prefeitos, explicando como eles poderiam usar o material. A partir da plataforma queremos estabelecer um relacionamento com cada município”, conta a diretora.
Atualmente a Fundação tem como monitoramento apenas o número de downloads feitos do documento “100 dias: Os primeiros passos pela primeira infância”. Segundo Heloisa, mais de 700 downloads foram feitos. A Fundação, por sua vez, vê com bons olhos. “É um número bom se pensarmos que esse é um projeto novo em meio a pandemia.”
Secretário de Primeira Infância por oito anos na Prefeitura de Recife, Rogério Moraes destaca que ainda existem muros a serem derrubados para priorizar a primeira infância nas gestões públicas. Segundo ele, o principal deles é fazer com que os governantes olhem para a causa com mais preocupação, e claro, compaixão. “Quando a gente fala sobre a dificuldade intersetorial, não está só na comunicação, mas também está na cabeça do gestor público que muitas vezes não é preparado para pensar nisso.”
Uma das grandes batalhas do Brasil é o combate a desigualdade social. Em 2019, a Fundação Abrinq divulgou dados alarmantes na série de estudos “A Criança e o Adolescente nos ODS: Marco zero dos principais indicadores brasileiros“com base em números divulgados pelo IBGE. De acordo com a pesquisa, 22,6% das crianças e adolescentes com idade entre zero e 14 anos viviam em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade.
Com isso, Rogério Moraes reforça: “o projeto de país que queremos, ou seja, com menos desigualdade social, só será consistente se ele priorizar as crianças”. “Isso passa pelas pessoas, e temos que pensar da base, que é a primeira infância”, acrescenta. E para começar o futuro é preciso olhar para o agora, as crianças são o agora.
Com o atual pano de fundo da pandemia do novo coronavírus, é praticamente impossível não pensar como a pauta da primeira infância pode ser prejudicada, ou até mesmo regredir no cenário das políticas públicas no Brasil. Na opinião de Rogério Moraes, isso definitivamente deve acontecer.
“Do ponto de vista da sociedade, um dos grupos mais afetados são as crianças. O aumento da pobreza e da desigualdade, no Brasil principalmente, que é um país que já é muito desigual. Quando a gente olhar para a pobreza, assim quando a criança chega para a família, ela amplia”, explica o ex-secretário executivo.
Em contrapartida, a pandemia provoca também um pensamento de retomada, esta que pode incluir os projetos para a primeira infância, diz Rogério. “A gente já estava com essa pauta acesa, e agora ela deve se fortalecer.” Entretanto, se o futuro pode ser um pouco mais esperançoso, o presente está exatamente o oposto.
Com a dificuldade da retoma das aulas presenciais, crianças vulneráveis estão desprotegidas fora das escolas, já que não possuem assistência em suas casas, segundo o gestor. “Eu acredito que muitas estão mais protegidas fora da escola, mas esse contexto é diverso. A escola é equipamento de apoio social.”
Além do guia, a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal também fez questão de publicar pesquisas voltadas para o contexto da pandemia. Heloisa Oliveira reforça que o desafio do retorno as aulas tem sido um embate para o estímulo das políticas públicas. No entanto, os novos gestores receberam materiais com protocolos sanitários a serem utilizados na educação infantil, e até mesmo orientações sobre os custos para reabertura das escolas.
“O Brasil é muito grande, a gente sabe que isso é muito difícil. Mas o que queremos é despertar o interesse das equipes técnica de cada município. Já a identificação de boas práticas deve aparecer mais pra frente, e não agora”, garante.
*Ana Beatriz Gonçalves é jornalista e repórter do Papo de Mãe