Acho bom sentir este incômodo, pois a fronteira entre agir pontualmente como fiz, com boa intenção, e sentir-se “uma salvadora” pode ser tênue
Ana Paula Yazbek* Publicado em 03/02/2021, às 00h00 - Atualizado às 09h36
Há algumas semanas, quando estava voltando de carro para casa, vi um homem e três crianças numa calçada revirando o lixo de um prédio para separar os recicláveis para vender. Com pressa de chegar logo em casa, demorei um tempo para processar a cena, e, quando já estava relativamente distante para retornar, me senti omissa por não fazer nada. Estacionei o carro na garagem, subi de elevador, entrei no apartamento seguindo todo o ritual em época de Covid: tirei os sapatos, lavei minhas máscaras, tomei um delicioso banho, preparei um breve lanche, sentei-me confortavelmente no sofá e liguei a TV para assistir minha série favorita.
Nesse instante, começou uma chuva forte, típica de dias de verão e ideal para o descanso de quem está no conforto de um lar. Aos poucos, aquela chuva foi se tornando uma tempestade, até cair a energia elétrica de vários quarteirões. Minha omissão voltou, agora acompanhada de preocupação e tristeza. Contei para Marina, minha filha, sobre a cena. Por coincidência, ela falou que também tinha encontrado com eles. Diferente de mim, ela parou e ofereceu uma banana e uma maçã que guardava em sua bolsa. À luz de velas e protegidas da chuva, eu e Marina conversamos sobre o quanto essa situação era injusta. Enquanto estávamos protegidas em nossa casa, limpas e certas de que em breve iriamos preparar um jantar gostoso, como estariam as três crianças e o homem? Será que conseguiram se abrigar? Estariam seguros?
Dois dias depois, eu os encontrei novamente. Desta vez, resolvi parar. Desci do carro, me apresentei e perguntei se queriam ir comigo ao mini mercado que ficava na esquina para que fizéssemos uma compra. O homem, que se apresentou como o pai, aceitou e as crianças sorriram para mim. Entrei novamente no carro para estacioná-lo e fui ao encontro da família que subia a rua. Enquanto subíamos, perguntei os nomes e idades das crianças: Joana[1]falou que tinha seis anos, Gabriele disse que tinha doze e Joesley falou que tinha nove e disseram que o pai se chamava João. No breve caminho ao mercado, perguntei ao pai o que estavam precisando e ele disse que se eu pudesse comprar leite e coisas para o café da manhã seria bom, porque tinham recebido uma cesta básica.
Um pouco antes de entrarmos no mercado, falei para as crianças que elas iriam entrar comigo, mas como estavam sem máscaras, talvez fossem barradas. Falei que se isso acontecesse, eu iria fazer a compra sozinha e entregaria no final.
Entramos no mercado, fomos de prateleira em prateleira fazendo as compras. Eu só pegava alimentos depois de perguntar se elas gostavam do que eu escolhia, ao mesmo tempo as crianças pegavam algumas guloseimas e me perguntavam se podiam colocar no carrinho. Quando chegamos à geladeira de carne, perguntei se gostavam de linguiça e Gabriele falou que sim, perguntei quantas pessoas moravam na casa deles e ela respondeu que eram doze pessoas, então peguei o suficiente para todos. Perguntei se precisavam de produtos de higiene e Gabriele falou que a única coisa que ela precisava era de um protetor para os lábios, porque com o sol e com o frio eles sempre rachavam. Falei que no mercado não tinha, mas que quando saíssemos dali, iria até uma farmácia comprar.
Enquanto fazíamos a compra perguntei se estavam na escola e os três disseram que sim, mas que não estavam indo por causa do coronavírus. Perguntei se gostavam de ler e os três responderam que sim com olhares vibrantes. Juro que me surpreendi com a alegria deles ao ouvirem esta minha pergunta. Contei que trabalho numa escola e que adoro ler para minhas crianças.
Depois de um tempo no mercado, um funcionário se aproximou e, gentilmente, ofereceu máscaras descartáveis às crianças. Passamos por todas as prateleiras, enchemos os dois pequenos carrinhos, passamos pelo caixa e saímos do supermercado.
Entreguei todas as compras ao João, perguntei se moravam por perto e Joana falou que era “quase perto”. Estava preocupada em terem que caminhar com o peso do lixo coletado e das compras. Mas, o receio de um possível contágio de coronavírus ao ficarmos no carro, me impediu de oferecer uma carona. Pedi que me esperassem, pois iria até a farmácia que ficava na outra esquina comprar o protetor labial para a Gabriele.
Quando voltei, entreguei-o e, antes de me despedir, falei que da próxima vez que a gente se encontrasse eu iria dar alguns livros. As três crianças sorriram e o pai também. Aproveitei para falar que ficava preocupada em vê-los sempre mexendo nas lixeiras, que era perigoso e que as crianças deviam ficar cansadas. Mas não insisti num discurso moralista, afinal quem sou eu para saber se não seria mais perigoso se ficassem em casa sem a presença de um adulto de confiança (ou confiável)?
Nesta noite, cheguei em casa me sentindo melhor, mas ainda incomodada diante da impotência frente às desigualdades sociais. Acho bom sentir este incômodo, pois a fronteira entre agir pontualmente como fiz, com boa intenção, e sentir-se “uma salvadora” pode ser tênue. Tenho clareza que esta situação chamou minha atenção por ter ocorrido em contraste a minha bolha social, isto é, na paisagem urbana de ruas arborizadas e prédios de um bairro residencial, ver uma família de catadores chama a atenção, talvez se andasse um pouco mais, num lugar “quase perto” como Joana me falou, quem destoaria da paisagem seria eu.
*Ana Paula Yazbek é pedagoga formada pela Faculdade de Educação da USP, com especialização em Educação de Crianças de zero a três anos pelo Instituto Singularidades; iniciou mestrado na FEUSP em 2018 e está pesquisando sobre o papel da educadora de bebês e crianças bem pequenas.
É sócia-diretora do espaço ekoa, escola que atende crianças de toda Educação Infantil (dos 0 aos 5 anos e onze meses). Além de acompanhar o trabalho das educadoras, atua em cursos de formação de professores desde 1995 e desde 2002 está voltada exclusivamente aos estudos desta faixa etária.
[1]Os nomes foram modificados, pois não tenho autorização para divulgá-los