Além da abordagem pedagógica, o ambiente e os profissionais devem garantir o direito à saúde e bem estar.
Roberta Manreza Publicado em 25/12/2020, às 00h00 - Atualizado às 15h40
Primeira infância com qualidade: A importância das políticas públicas.
Por Damaris Gomes Maranhão*
Os serviços de educação infantil para as crianças menores de cinco anos e onze meses compreendem a “creche” e a “pré-escola”, embora haja outras denominações para estes serviços públicos ou privados. O termo creche é associado ao passado assistencial do atendimento de crianças em período integral para liberação da mão de obra feminina, originalmente criado e mantido por empresas e organizações assistenciais, por isso esse nome é menos empregado e até rejeitado na rede privada.
Na cidade de São Paulo, no início da década de 1970, foi criado o Projeto Centros Infantis vinculado à Secretaria de Bem-Estar Social, que se destinava apenas aos filhos de mães trabalhadoras de baixa renda, numa tentativa de compensar as “carências”. Após a Constituição de 1988, as creches brasileiras foram reconhecidas como direito à educação de todas as crianças e direito dos trabalhadores, mas como opção da família. A partir desse momento são gradativamente transferidas para gestão das Secretarias Municipais de Educação em todo país, recebendo outras denominações conforme o município.
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a partir dos quatro anos de idade é dever[1] dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na escola de educação infantil. Considerando que as crianças podem completar quatro ou seis anos em diferentes meses do ano, foi fixado que todas que completem a idade limite até 31 de março devem ser matriculados na pré-escola (quatro anos) ou ensino fundamental (seis anos). Cabe à gestão pública a busca ativa das crianças juntos às famílias
A família pode optar por manter os cuidados e educação restritos ao ambiente familiar até os três anos e onze meses. Mas é preciso que outros programas governamentais acompanhem e avaliem se todas as crianças estão seguras e com seus direitos à saúde e à educação garantidos desde o nascimento. Quem cuida e interage com a criança a maior parte do dia? O ambiente é seguro e ao mesmo tempo rico para suas explorações e aprendizagens? O cuidador está atento e valoriza as diversas expressões de cada criança que desenvolve a atenção, percepção, observação, imitação, repetição, linguagens e pensamento relativo ao ambiente histórico-sócio-cultural desde o nascimento? Mesmo quando as mães ou pais optam por compartilhar os cuidados/educação de seus filhos com um parente ou babá é preciso considerar a qualidade do cuidado e das interações que essa pessoa consegue estabelecer com a criança.
Uma criança poderá ser bem cuidada, interagir, brincar, ter ricas experiências no contexto familiar. Mas tudo depende do modo e estilos de vida das famílias, das condições de moradia, das interações com outras crianças e da capacidade e disposição de mediação das aprendizagens pelos adultos responsáveis por elas. Não é uma questão apenas de acesso aos bens materiais, mas sobretudo de adultos que considerem a criança capaz e potente, desde o nascimento. Adultos que percebam que ela está aberta ao mundo, curiosa para aprender sobre si mesma, sobre o outro e tudo que compõe seu ambiente, por meio dos cuidados, interações e brincadeiras, de acordo com o contexto sociocultural onde vive.
Nos seus primeiros mil dias de vida as crianças se beneficiam dos cuidados de qualidade e das oportunidades do seu ambiente construindo as bases do desenvolvimento humano. Nascemos com muitas células cerebrais que vão se conectando conforme as experiências. Assim, o acesso aos cuidados e nutrição adequados ao seu processo de crescimento e desenvolvimento associados às interações, à construção de vínculos afetivos com os cuidadores e oportunidades para movimentar-se livremente, explorando com segurança os diversos sons, linguagens, expressões, materiais e objetos, são a chave do desenvolvimento integral e saudável.
Não há um limite mínimo de idade para frequentar um Centro de Educação Infantil, ou creche, pois em termos de legislação[2]é um direito reconhecido desde o nascimento. Entretanto é importante considerar que nos primeiros meses o bebê[3] tem dependência psicofísica de sua mãe/ ou cuidador primário que requer uma transição cuidadosa para um outro ambiente.
A creche/escola tem o dever de propiciar ambiente composto por uma arquitetura adequada aos cuidados, às interações e brincadeiras peculiares ao desenvolvimento de cada fase e, ao mesmo tempo, seguro. Deve favorecer que a criança possa vivenciar, observar, investigar diferentes fenômenos, expressar-se e relacionar-se com seus pares de forma livre mas também mediado por professores competentes e orientados por um projeto pedagógico.
O projeto deverá ser orientado pela Base Nacional Comum Curricular, ou seja, um documento oficial que norteia o currículo desde a creche. E o currículo nada mais é que o orientador do percurso de cada criança, como uma trilha, em sua trajetória educacional, desde seu acolhimento no serviço. Para cumprir a BNCC o serviço educacional tem que garantir um ambiente seguro e ao mesmo tempo rico, afetivo e desafiador[4].
A qualidade do serviço começa com a disponibilidade dos professores e gestor para escutar cada criança e sua família que a partir da matrícula compartilharão cuidados e educação, considerando diferentes crenças, costumes, hábitos e necessidades. No caso de demanda ou não concordância com algum cuidado exigido pela escola, ou pela família, é preciso negociar, ou seja, ponderar juntos os riscos e benefícios para aquela criança e para o coletivo. Por exemplo, uma família que não concorde em vacinar as crianças por convicção ideológica é diferente daquela que apresenta um parecer médico que contraindica a vacinação por uma patologia de base. Nesses casos específicos de crianças que não podem ser vacinadas, espera-se que estejam protegidas pela imunidade de rebanho, ou seja, pela imunização de todas as outras.
A escola precisa considerar e se preparar para o atendimento de crianças com demandas de cuidados/educação especiais, não apenas relativo ao aspecto intelectual, mas também quando requer cuidados especiais, por exemplo, portadores de algumas síndromes, ou que usam de forma definitiva ou temporariamente uma ostomia ou colostomia, diabéticas, alérgicas ou outras necessidades, conforme já acompanhamos em creches e pré-escolas. Nesses casos é preciso que a escola consiga estabelecer ações intersetoriais, por exemplo comunicar-se com os profissionais de saúde que acompanham a criança e juntos com a família combinar os cuidados específicos prescritos.
Há também diferenças de crenças, ideologias que repercutem no cotidiano das crianças, na relação entre famílias e professores. Um dos casos que me recordo foi relativo a inserção de professores do sexo masculino em creches que culminou inclusive em um projeto de lei bastante polêmico cuja deputada estadual queria restringir que os professores do sexo masculino trocassem fraldas ou auxiliassem as crianças no uso do sanitário. A dificuldade de se compreender a profissionalidade[5] do processo de cuidar na educação infantil, em sua interface com o educar, pode resultar em equívocos como esse ou como a recomendação de que banhos de meninos e meninas sejam realizados em momentos separados[6]. As questões relativas ao gênero é uma das causas de conflitos, mesmo em escolas de alto padrão de São Paulo, quando um pai criticou o cuidado da professora com seu filho, que o ensinou a secar o pênis com papel higiênico após urinar, pois ele considerava essa prática inadequada para meninos. Esse exemplo é típico das diferenças que precisam ser discutidas entre as famílias, coordenador pedagógico e professores para encontrarem um ponto comum e benéfico para todas as crianças.
Em outra creche a coordenadora pedagógica escutou atenciosamente e se propôs a ajudar um casal homoafetivo, pais de gêmeos, que estava preocupado como a escola celebraria o dia das mães. Da mesma forma poderá haver conflitos relativos as diferentes religiões, costumes, que precisam ser negociados.
Os familiares tem o direito de conhecer o ambiente, composto por um espaço adequado e permeado pelas interações mediadas por profissionais habilitados e continuamente atualizados para oferecer oportunidades a todas as crianças desde bebês, a exercerem seus direitos de aprendizagem previstos na BNCC: conviver, brincar, participar, explorar, expressar, conhecer-se, conviver, participar, explorar, expressar-se. O projeto pedagógico deve ter uma intencionalidade educativa, no sentido de proporcionar diversos campos de experiência previstos na BNCC que se interligam, relacionados a construção da identidade ( eu, outro, nós), a percepção, expressão e movimentação corporal e gestual; expressão e identificação de sons, traços, cores, formas; desenvolvimento da escuta, fala, pensamento e imaginação; construção da noção de espaços, tempos, quantidades, relações e transformações.
Além da abordagem pedagógica, o ambiente e os profissionais devem garantir o direito à saúde e bem-estar. Em 2010 foi publicado pelo MEC um texto complementar às Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Infantil[7], onde se prevê dezenove indicadores de uma creche e pré-escola promotora do crescimento e desenvolvimento saudável:
Finalizando abrimos para o debate visando o aprimoramento da parceria entre mães, pais, avós ou outros familiares, professores, coordenadores pedagógicos, assistentes sociais, profissionais de saúde e todos aqueles que se interessam pelo tema.
*Damaris Gomes Maranhão, Doutora em Ciências da Saúde, é professora do Instituto Vera Cruz e do Instituto Avisala.
Referências
[1]De acordo com a Constituição Federal, artigo 208, com redação da Emenda Constitucional 59/2009, a educação básica é obrigatória dos quatro aos dezessete anos de idade.
[2]Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Institui e orienta a implantação da Base Nacional Comum Curricular a ser respeitada obrigatoriamente ao longo das etapas e modalidades no âmbito da Educação Básica. Brasília. CNE, 2017.
[3]Nesse texto classificamos como “bebê” a partir do primeiro mês de vida até os dezoito meses. Antes desse período se classifica como “neonato”.
[4]Oliveira ZR. Et al. O trabalho do professor de educação infantil. Editora Biruta: São Paulo, 2019. Edição atualizada em conformidade com a Base Nacional Comum Curricular.
[5]O cuidado na escola deve ser embasado nas ciências da saúde e pedagógicas, portanto profissional e não com base no senso comum, confundido como um saber “natural” das mulheres. Semelhante ao cuidado de enfermagem ou de outro profissional deve ser orientado por uma técnica, um código de ética e na legislação profissional que o orienta e fiscaliza. Doutora em Ciências da Saúde, é professora do Instituto Vera Cruz e do Instituto Avisala
[6]“http://www.saosebastiao.sp.gov.br/sistemas/procseletivo/arquivos/1.2015.1_1762015144148.pdf. Questionamos a recomendação de que “o banho de meninas e meninos deva ser em horários ou ambientes distintos”
[7]ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL: CURRÍCULO EM MOVIMENTO – Perspectivas Atuais Belo Horizonte, novembro de 2010