Com a pandemia do novo coronavírus, não foi apenas o índice de contaminação que subiu, o que seria suficiente, pois já é um problemão. Mas infelizmente o Brasil – e o mundo – assistem, também, ao aumento da violência doméstica, culminando, em muitos casos, no feminicídio, o que é a morte intencional de pessoas do sexo feminino, considerado crime hediondo em nosso país, desde 2015.
Roberta Manreza Publicado em 24/06/2020, às 00h00 - Atualizado às 11h10
Por Luciana Monteiro Portugal* para blog Perennials Forever,
A violência doméstica é um chute no estômago da sociedade, aquele tipo de incômodo que chega silencioso e vai ficando insuportável. Levada ao tema inicialmente quase sem perceber, de repente me vi num envolvimento total. Mergulhei no assunto. Criei empatia pelas vítimas, chorei, senti muita raiva e aí me convenci de que as mulheres vítimas da violência doméstica não podiam se calar. Nem eu!
Com a pandemia do novo coronavírus, não foi apenas o índice de contaminação que subiu, o que seria suficiente, pois já é um problemão. Mas infelizmente o Brasil – e o mundo – assistem, também, ao aumento da violência doméstica, culminando, em muitos casos, no feminicídio, o que é a morte intencional de pessoas do sexo feminino, considerado crime hediondo em nosso país, desde 2015.
Os números são estarrecedores: em março, os casos de violência doméstica já registravam aumento de 8,5% nas ligações para o canal do governo federal que recebe denúncias de violência contra a mulher, na contramão dos demais crimes violentos. Segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, somente no mês de abril, o aumento ficou em torno de 28%. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública constatou uma elevação nos casos de feminicídio durante a quarentena de 41,4% só em São Paulo.
No Brasil, uma em cada três mulheres sofrem ou já sofreram violência doméstica. Nosso país ocupa a 5ª posição em relação à taxa de feminicídios no mundo (em comparação com os países desenvolvidos, 48 vezes mais que no Reino Unido, 24 vezes mais que na Dinamarca e 16 vezes mais do que no Japão) e o aumento, possivelmente, está ocorrendo face ao consumo maior de bebidas alcoólicas e estresse emocional. Com a pandemia, as vítimas estão isoladas com os seus agressores.
Mas assim como parece acontecer com os números de casos de contaminação e mortes pelo novo coronavírus, os da violência doméstica também são subnotificados. O que define esse crime é qualquer ação ou omissão baseada no gênero feminino que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico e dano moral ou patrimonial, podendo ser praticada por pessoas com ou sem vínculo familiar. E para quem acha que muitas mulheres não denunciam por medo ou vergonha, saiba que um grande número não consegue identificar que vive um relacionamento abusivo. É o chamado Ciclo da Violência Doméstica, que consiste no momento do aumento da tensão, da agressão em si e, finalmente, na fase da Lua-de-Mel, quando o agressor se mostra arrependido e promete que aquilo nunca mais se repetirá. Na esmagadora maioria das vezes se repete, e de maneira muito mais violenta. Muitas das denúncias feitas aos canais e às redes de apoio especializados atestam que aquela é a primeira vez que o agressor comete a violência, o que só confirma que este é mais um dos efeitos nocivos que a pandemia apresentou. Isso tudo é tão maluco, parece tão inacreditável, que decidi disponibilizar um acesso para o TEDx no qual a modelo Jessica Aronis (basta clicar) conta como sua história de amor virou um pesadelo. Um típico caso de ciclo da violência.
E o que veio de bom, então, em contrapartida desta realidade dura e criminosa? Dentre tantas reflexões e mudanças que o novo coronavírus nos impôs, qual a lição em relação ao tema que estamos tratando?
Eu acredito que o Brasil e o mundo tiveram que se deparar com este fato: a violência doméstica e o feminicídio existem, sempre existiram e nós, mulheres e homens ou qualquer outro gênero, não podemos nos omitir. Se a obrigação de denunciar não é legal – no sentido de lei – ela é moral e, acima de tudo, humana. Diversas iniciativas já foram criadas por órgãos públicos e de classes e empresas – algumas delas após perderem uma colaboradora para o feminicídio -, e inúmeros sinais gesticulares de alerta estão sendo divulgados nas redes sociais e aplicativos de comunicação, pois não é difícil imaginar que uma mulher em isolamento com seu agressor não consiga telefonar para os canais de denúncia. Elas são constantemente vigiadas. Elas e seus celulares.
Através de medidas protetivas estabelecidas pela justiça, e em decorrência de uma lei municipal que foi sancionada na esteira do modelo francês, a capital de São Paulo disponibiliza leitos de hotéis para mulheres vítimas deste tipo de violência. Eles são destinados a elas, aos profissionais da saúde e aos moradores em situação de rua.
Finalmente, por que tanto empenho, pesquisa e estudo sobre o tema? Certamente não foi pelo tempo disponível durante o isolamento. Sou membro do Núcleo Empresas e Direitos Humanos da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil/SP. Mais um trabalho voluntário. E numa iniciativa minha e da coordenadora do núcleo, juntamente com outras colegas, após uma roda de conversa, elaboramos uma cartilha sobre o papel da empresa no combate à violência doméstica, aqui também disponível pelo clique, caso queiram ter acesso ao que muito expus neste texto e aos canais de denúncia, além de outras ações.
O assunto desta quinzena foi muito sério! Leiam a cartilha, divulguem, compartilhem. Agora ela é de todos!