Pelo resgate do cuidado, uns com os outros

A psicanalista Luisa Lancellotti fala sobre a importância do cuidado, principalmente do cuidado afetivo. Mas afinal, o que é isso?

Luisa Lancellotti* Publicado em 28/04/2021, às 00h00

Vamos cuidar uns dos outros -

Nunca antes, ao menos para a geração adulta atual, o conceito e a palavra cuidado estiveram tão em evidência e urgência. O ano de 2020 trouxe-nos a emergência do cuidado, precisávamos ter cuidado com tudo. Cuidado ao sair de casa, cuidado ao encostar em superfícies, cuidado ao fazer as compras do mês, cuidado nos espaços públicos, cuidado… Ainda precisamos.

Mas para além do cuidado sanitário, que tomou frente e ênfase no ano passado, estamos explorando essa palavra em sentidos mais amplos, e gostaria de abordar uma face específica – e essencial – do cuidado: o cuidado afetivo. Esse que é sobre cuidarmos uns dos outros, mas também esse que é cuidar dos nossos afetos, o que, como e quanto sentimos e vivemos na experiência mental, psicológica e emocional. O que é cuidar de nossos afetos? Qual a importância de cuidar de nossos afetos? Afinal, o que é o cuidado?

O Ser Humano é um ser do cuidado. Em cuidado nascemos, e em cuidado partimos. Observemos nossos co-habitantes de planeta, os animais. Mais especificamente os mamíferos, animais com quem guardamos maiores semelhanças, e com os quais conseguimos mais facilmente nos relacionar. Uma girafa filhote, por exemplo, ainda que precise da amamentação de sua mãe girafa para se fortalecer, já está preparada para viver sua vida na natureza. Apenas com o instinto já sabe como encontrar onde mamar, sabe quem é sua mãe, sabe andar, sabe ruminar, sabe fugir de predadores, já nasce até de pé! Isso se encontra no reino animal de forma muito extensa, com raras exceções.

Com o Homo Sapiens isso se dá de uma forma totalmente diferente. Como dizemos na psicanálise, o ser humano nasce prematuro. Vivemos na barriga de nossa mãe por nove meses e, ainda assim, ao nascer não estamos em nada preparados para o que é a vida. A amamentação não é garantida, mãe e bebê precisam aprender o que é isso, e nem sempre se encontram em possibilidade de fazê-la acontecer. Demoramos a aprender a andar, passamos por um processo gradual de conhecimento de nosso corpo, precisamos aprender a usar nossos sons, e depois nossa fala, aprender a mastigar, a controlar nossas excreções. Precisamos aprender tudo. Nada é garantido pelo instinto. E todo esse aprendizado depende de uma comunidade. De uma cultura. De um cuidado. Como diz um provérbio africano “É preciso uma aldeia para se educar uma criança”.

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Hospitalismo

Renè Spitz, médico psiquiatra, psicólogo e psicanalista austríaco (1887 – 1974), observou, estudou e teorizou o que ele chamou de “Hospitalismo”, ao acompanhar crianças órfãs e abandonadas, na época da Segunda Guerra Mundial. O Hospitalismo seria o complexo de efeitos que bebês e crianças sofrem em consequência de um prolongado tempo de privação de afeto exclusivo. Durante a guerra, em decorrência de bombardeios e muitas mortes, inúmeras crianças precisavam ser evacuadas para instituições, orfanatos, hospitais, onde poderiam ser, acima de qualquer coisa, resguardadas e mantidas em ambiente seguro.

Acompanhando o desenvolvimento psico afetivo de mais de cem crianças, em um orfanato nas redondezas de Nova Iorque, o psiquiatra observou que, apesar de muito bem tratadas e resguardadas, as crianças entravam em um estado de letargia e estupor que, em diversos casos, levaram-nas a óbito. O que chamo aqui de afeto exclusivo é a possibilidade, e necessidade, de o bebê/criança encontrar e receber afeto e investimento libidinal que o forneça a experiência de ser desejado e introduzido na cultura.

Embora as enfermeiras do orfanato oferecessem os cuidados necessários para que os bebês e crianças tivessem suas condições de existência essenciais garantidas, seria impossível atender às necessidades afetivas de todas elas. De maneira geral, o estudo concluiu a importância para bebês e crianças, principalmente na primeira infância, de uma relação afetiva que seja capaz de nomeá-los, dizê-los, reconhecê-los, e de introduzi-los na vida, de garantir momentos em que esse bebê será olhado com exclusividade. Momento em que seu choro é ouvido e nomeado como fome, mas um choro mais estridente é frio, em que lhe é oferecido a uma alimentação como um momento de nutrição física e afetiva, em que é sonhado enquanto um profissional de sucesso, no futuro. São momentos no qual desejamos por aquele bebê, e que investimos nele um afeto, e ali, naquele momento de investimento, ele tem nossa total e exclusiva atenção. Um bebê não resiste ao desamparo. É através do desejo e do afeto de um Outro que nos constituímos.

O amparo é necessário

Em verdade, estamos todos desamparados. Se em coletivo nos desamparamos, e se em coletivo nos amparássemos? 

Corta cena, cá estamos, enfim desamparados. Ora sentimo-nos cansados, ora agitados. Ora solitários, ora fadigados daqueles com quem dividimos um teto. Ora esperançosos, ora fatalistas. Confusos, exaustos, tristes. Com saudade, com raiva, com pressa. Estamos vulneráveis e com a sensação de que não há contorno. Cadê esse agente de maternagem que me oferecerá esse afeto exclusivo, para que eu possa sentir que há alguém olhando pra mim, cuidando de mim, e vislumbrando um sonho e um futuro, pra mim, nomeando o que estou sentindo, porque eu mesmo já não consigo? Quem vai me amparar?

O cuidado e o amparo devem circular, isto é, não se trata de assumirmos um dever de cuidar do outro incondicionalmente, a todo o tempo, para o todo sempre. Mas a verdade é que o ser humano não sobrevive ao ser deixado à própria sorte. Somos seres do coletivo, vivemos em rede, e embora o isolamento social e físico seja essencial para o momento atual, não podemos deixar que o isolamento afetivo impere. Como podemos aprender a cuidarmos, uns dos outros? Essa é uma pergunta para a qual não tenho uma resposta definitiva. Mas penso muito na escuta, tão praticada pela psicanálise, essa que se propõe a escutar o sujeito que habita dentro de cada indivíduo, e que age enquanto efeito ético e humano. Claro, não estou sugerindo que sejamos todos psicanalistas, mas penso se o caminho não se mostra no exercício de nossa capacidade, enquanto seres humanos, de darmos chance de existência à dor e ao desamparo do outro. Em verdade, estamos todos desamparados. Se em coletivo nos desamparamos, e se em coletivo nos amparássemos?

*Luisa Lancellotti é psicanalista

Assista à entrevista com o psiquiatra Rodrigo Bressan, do Instituto Ame Sua Mente, sobre saúde mental na pandemia:

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