Corregedoria do TJ-SP diz que vai exigir “providências urgentes” para caso de juiz que falou da Lei Maria da Penha
Mariana Kotscho* Publicado em 18/12/2020, às 00h00 - Atualizado em 15/01/2021, às 11h44
Como todas as vítimas de violência doméstica, Joana* vive com medo. De tudo. Não precisava ter também medo de um juiz. “Será que vale a pena levar esse negócio de medida protetiva para a frente?”, foi o que ela ouviu do magistrado, em audiência sobre pensão alimentícia.
Reportagem do Papo de Mãe revelou, na noite de quinta-feira (17), trechos desta audiência, ocorrida numa Vara de Família em São Paulo, na qual o juiz expressou diversas falas de cunho misógino e machista.
“Se tem lei Maria da Penha contra a mãe (sic), eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”, afirmou o juiz. “Doutora, eu não sei de medida protetiva, não tô nem aí para medida protetiva e tô com raiva já de quem sabe dela. Eu não tô cuidando de medida protetiva.”, disse também.
A Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo já identificou o juiz e disse em nota que vai exigir “providências urgentes”. A nota, que segue abaixo, é assinada pelo Corregedor Geral de Justiça, Ricardo Anafe.
Na data de ontem, tomei conhecimento de reportagem com o título “Não tô nem aí para a Lei Maria da Penha. Ninguém agride ninguém de graça”, que traz trechos de audiência aparentemente realizada em Vara de Família e Sucessões desta Capital, no transcorrer da qual podem ter ocorrido, em tese, por parte do Magistrado que a presidia, condutas que violam os deveres funcionais estabelecidos na Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar no 35/79) e no Código de Ética da Magistratura Nacional.
Destarte, ante a aparente gravidade das condutas, a exigir providências urgentes no sentido especialmente de obter cópia integral da audiência realizada e completa identificação de seus participantes, determino a instauração, de ofício, por esta Corregedoria Geral da Justiça, de expediente de apuração preliminar. Autue-se, com cópia da aludida reportagem e dos áudios que a acompanham, voltando conclusos com urgência na sequência para ulteriores providências.
São Paulo, 18 de dezembro de 2020.
RICARDO ANAFE Corregedor Geral da Justiça
Gabriella Nicaretta, advogada da vítima.
“A violência institucional é uma realidade dura enfrentada por todas as vítimas de violência doméstica que buscam o sistema a fim de obter proteção. A mulher é questionada, desacreditada e, por vezes, desestimulada a registrar a ocorrência de violência doméstica, e isso desde o momento em que entra em uma delegacia da mulher. Essa violência não é apenas por parte do judiciário, mas do sistema como um todo. Há uma cultura de autoritarismo do judiciário que precisa ser combatida. Cada vez mais a sociedade precisa se conscientizar de que pode e deve denunciar os abusos cometidos por agentes do Estado em exercício, pois estes devem servir à sociedade e não humilhar os cidadãos.”
Flávia Rahal, advogada e Professora da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de SP.
“É inacreditável que um magistrado conduza um ato processual com esse grau de desrespeito, abuso e falta de empatia. Nem mesmo a afirmação de que “tinha medo” foi capaz de alterar o rumo da audiência, à qual o Juiz conduziu sem levar em consideração a vontade da mulher ou o histórico abusivo da relação. Tampouco deixou de ameaçar com a possibilidade de perda da guarda e da horrorosa afirmação de que o agredido sempre tem culpa pela agressão. O magistrado foi inadequado, desumano, machista e impróprio, merecendo dos órgãos competentes resposta firme. É preciso evitar que mais mulheres e crianças sejam submetidas a abusos assim”.
Kenarik Boujikian, desembargadora aposentada do TJSP ( 1989/2019), especialista em Direitos Humanos
“O Papo de Mãe, ao publicizar a audiência, faz um jornalismo comprometido com a verdade e com a realidade. Contribui efetivamente com o Judiciário ao tornar visível a violação que cabe ao próprio poder combater, possibilitando que todos vejam, inclusive os órgãos internos, que é necessário preparar os juízes e que o que tem sido feito até agora é insuficiente.
O vídeo e a transcrição da audiência de alimentos em que “Joana” passa por um constrangimento inominável, praticado pelo juiz, é estarrecedor.
Certamente este magistrado não pode seguir no julgamento deste processo. A suspeição, pela forma como tratou a mulher, é cristalina.
O juiz encarna o que de pior se pode esperar de um magistrado.
Juízes têm o dever de dar forma ao projeto constitucional, que clama pela igualdade e deve obediência às leis, inclusive a Maria da Penha.
Audiência não é espaço para desrespeito nem para ameças veladas nem para pressão”.
Cláudia Luna, presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-SP
“Toda esta cobertura magnífica sobre o caso vai reverter no resultado que nós precisamos e estamos aguardando muito que é, para além da capacitação de todo o sistema de justiça, não apenas de magistrados e magistradas, pra que possam adotar um posicionamento fundamentado a partir de um letramento racial e de gênero. É um momento também de termos aplicabilidade híbrida da Lei Maria da Penha como está previsto na própria Lei. Não precisa mais ter uma vara de violência especializada que só atue na esfera criminal e ter uma vara de família que atue numa disconexão que acaba resultando numa série de violências perversas e revitimizadoras que impactam essas mulheres que estão vivenciando essas situações de violência. A gente precisa que a vara de violência doméstica possa aplicar a lei tanto na perspectiva criminal como na cível, garantindo as questões relativas a alimentos, divórcio, guarda de filhos, fazendo tudo o que a Lei Maria da Penha determina.
Este caso é o instrumento que a gente precisa pra fazer essa pressão hoje, já, pra que em 2021 a gente vire definitivamente esta chave. O grande entrave é ter dois caminhos de justiça que não se conectam e a mesma vítima, a mesma violência, é encarada de formas diversas pela justiça que não está capacitada para entender que é uma vítima e o problema é um só.”
Celeste Leite dos Santos, Promotora de Justiça Gestora do Projeto Avarc do Ministério Público-SP
“O caso relata exemplo típico de revitimização. Independente do resultado do processo este não pode ser fonte de traumatização, especialmente no caso de vítimas vulneráveis como o caso retratado. O Projeto de Lei de Estatuto da Vítima (PL 3890/2020) visa fomentar o respeito à dignidade humana da vítima. Dentre as medidas previstas está a capacitação de todos os atores do sistema de justiça, a vedação de perguntas de caráter vexatório e discriminatório e o desenvolvimento de estratégias concretas de desvitimização individual e coletiva”.
Valéria Scarance, Promotora de Justiça, coordenadora do núcleo de gênero do Ministério Público-SP
“A Lei Maria da Penha é uma as três melhores leis do mundo na defesa de mulheres, é a lei mais conhecida do Brasil e um marco na defesa das mulheres. Desmerecer a Lei Maria da Penha é desmerecer todas as mulheres, ignorar nossa luta infinita por respeito e igualdade
A agressão à mulher é também uma violência severa contra filhos e filhas. Há o sofrimento, o trauma a sensação de desamparo porque essa violência acontece dentro de casa. Além disso, quem pratica violência, ensina violência. O exemplo é o maior professor de todos os tempos”.
O Papo de Mãe entende que é necessária uma transformação ampla do judiciário. E ressalta a importância de o juiz já ter sido identificado pela Corregedoria do TJ-SP. Que as medidas cabíveis sejam tomadas.
Juiz : “Vamos devagar com o andor que o santo é de barro. Se tem lei Maria da Penha contra a mãe(sic) eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”. (Advogadas tentam interromper e ele não deixa)
Juiz : “Qualquer coisinha vira lei Maria da Penha. É muito chato também, entende? Depõe muito contra quem…eu já tirei guarda de mãe, e sem o menor constrangimento, que cerceou acesso de pai. Já tirei e posso fazer de novo”.
Juiz : “Ah, mas tem a medida protetiva? Pois é, quando cabeça não pensa, corpo padece. Será que vale a pena ficar levando esse negócio pra frente? Será que vale a pena levar esse negócio de medida protetiva pra frente?
Juiz : “Doutora, eu não sei de medida protetiva, não tô nem aí para medida protetiva e tô com raiva já de quem sabe dela. Eu não tô cuidando de medida protetiva.”
Juiz: “Quem batia não me interessa”
Juiz: “O mãe, a senhora concorda, manhê, a senhora concorda que se a senhora tiver, volto a falar, esquecemos o passado….”
Juiz: “Mãe, se São Pedro se redimiu, talvez o pai possa…..”
F.: “Eu tenho medo”
(vamos lembrar aqui que F. já sofreu violência doméstica e o juiz insiste numa reaproximação dela com o ex)
Juiz: “Ele pode ser um figo podre, mas foi uma escolha sua e você não tem mais 12 anos”
(No trecho acima, ele insinua mais uma vez culpar a vítima pelas agressões sofridas, reafirmando a declaração de que “ninguém apanha de graça”)
*Mariana Kotscho é jornalista do Papo de Mãe