Famílias têm que recorrer à Justiça ou a doações para receber fórmula infantil recomendada para casos de desnutrição
Redação Papo de Mãe Publicado em 09/07/2021, às 14h12
Elysa tem dois anos e pesa apenas sete quilos. Nascida prematura, aos cinco meses de gestação, ela teve hidrocefalia, que é o aumento anormal de líquido no cérebro, gerando pressão na caixa craniana. Mais tarde, descobriu-se que ela também tinha microcefalia, uma condição em que a cabeça do bebê é menor do que o normal; e tinha síndrome de West, uma doença neurológica que provoca espasmos e crises de epilepsia. Por conta das dificuldades motoras, a única maneira de ela se alimentar é artificialmente por meio da chamada sonda gastroenteral, que fica ligada diretamente ao estômago.
Carla Veríssimo, a mãe de Elysa, afirma que sua filha precisa se alimentar com um leite chamado Infatrini – na realidade, uma fórmula infantil hipercalórica indicada para casos de problemas severos de falta de ganho de peso. E ela só ficou sabendo disso no hospital onde sua filha ficou internada da última vez, já que as internações são frequentes no caso de Elysa e ela notou que no hospital a filha ganhou peso porque davam esta fórmula. Por falta de orientação, informação e acesso, ela nunca conseguiu ir até as farmácias de alto custo, mantidas pelo governo paulista, para solicitar o item de forma gratuita.
Elysa também não tem acesso a atendimento multidisciplinar: “Só pediatra. O ‘neuro’ dela é lá no (posto de saúde) Paraisópolis, mas quando tem, né? Porque ainda tá na fila de espera, tem um ano já, acho”. O valor médio de uma lata de Infatrini é R$ 115,00. O consumo pode chegar a 15 latas por mês, ou R$ 1.725,00.
Cidade Júlia é onde Carla mora com Elysa, outros três filhos e o marido, em uma casa de cozinha, quarto e banheiro. O bairro é um dos mais de 30 que compõem a região de Cidade Ademar, na zona sul de São Paulo, onde vivem cerca de 250 mil pessoas. Ir de lá até Paraisópolis, também na zona sul, pode levar até uma hora e meia usando o transporte público. Desde o nascimento de Elysa, Carla parou de trabalhar porque a filha precisa de atenção em tempo integral. “Eu não saio com ela pra nada, a não ser ir para o hospital”.
A legislação sobre o fornecimento de medicamentos pelo SUS é muito clara. “A necessidade do Estado de prover saúde e o direito à vida das pessoas é princípio constitucional, disposto no artigo 196 da Constituição”, diz a advogada Isabela Nascimento, da Perdiz Advogados. Existem três requisitos básicos para que o item seja fornecido gratuitamente:
É preciso que a pessoa tenha um relatório médico informando a necessidade, porque só aquele leite atende a necessidade dela. Depois, tem que ficar comprovada a incapacidade financeira dos provedores dessa criança. Por último, é necessário que ele tenha registro na Anvisa” (Isabela Nascimento, advogada).
Neste contexto, todo cidadão teria garantido o acesso a medicamentos gratuitos. E, por isso, um relatório médico, e não apenas a receita fornecida pela equipe de enfermeiros de um hospital, seria fundamental para que Carla pudesse entrar com um pedido judicial para obter o leite. Mas, a mãe de Elysa sequer sabia que poderia recorrer à Justiça, gratuitamente, através da Defensoria Pública.
Há, no SUS, uma lista básica de itens que devem ser fornecidos sem custo ao paciente. É a chamada Rename – Relação Nacional de Medicamentos Essenciais –, atualizada regularmente. Mesmo assim, o fornecimento não é garantido. Elysa, por exemplo, toma um medicamento de uso contínuo que consta na lista, que tem venda controlada. “E esse remédio, a médica dela me dá a receita, no posto ela vale por seis meses. Mas aí você chega lá, e não tem”, diz Carla. Na farmácia, a mesma receita tem validade para apenas uma compra. “Se eu vou comprar eu tenho que comprar para seis meses, são cinco ou seis frascos. E às vezes eu não tenho dinheiro para comprar cinco, seis frascos, só tenho dinheiro para um. E aí não dura um mês o frasco. Aí eu tenho que ir ao médico de novo, pegar outra receita, aí não tem no posto de novo, mesma luta”, desabafa Carla.
Além disso, há outra questão: a Rename é uma lista-base. Serve apenas para orientar a política de fornecimento de medicamentos. Isso significa que cada estado ou município pode acrescentar ou remover itens de acordo com sua realidade, até para respeitar as particularidades de cada região brasileira. Mas, exatamente por essa falta de um padrão único, nem sempre é possível encontrar alimentos como Infatrini à disposição na rede pública e, em muitos casos, os pais acabam tendo que recorrer à Justiça – quando eles sabem que podem fazer isso. E, mesmo assim, nem sempre o abastecimento é garantido.
É o caso de Marisa de Assis Silva. João, seu filho, também nasceu prematuro, de 34 semanas, e apresentou características da hidrocefalia já antes do parto. Na ocasião, os médicos estimaram que ele viveria apenas três meses. Hoje, com um ano e meio, ele já passou por quatro cirurgias na cabeça e também depende de alimentação gastroenteral. Por prescrição médica, João também precisa do Infatrini. Depois de fazer uma “vaquinha” online, no ano passado, Marisa conseguiu arrecadar mais de R$ 8 mil. “Só que o gasto com o leite para ele é de R$ 2 mil por mês”, diz Marisa.
Primeiro, ela tentou obter a fórmula na farmácia de alto custo. Moradora de Mairinque, a cerca de 70 quilômetros da capital, a unidade mais próxima para ela fica em Sorocaba – uma viagem de 38 quilômetros e cerca de 50 minutos. Depois de quatro tentativas, sem sucesso, ela decidiu recorrer à Justiça. Em dezembro do ano passado, conseguiu, enfim, receber a fórmula. “Aí teve troca de prefeito, e janeiro e fevereiro eu não consegui pegar”. Marisa precisou recorrer novamente a advogados, para garantir o recebimento a partir de março. “Como ele não pode ficar sem, eu conto com ajuda de amigos, da igreja que eu frequento, sabe?”
“Encefalopatia e prematuridade extrema são fatores de risco nutricional, com indicação de olhar individualizado para este tópico”, diz a dra. Luísa Zagne Braz, coordenadora médica da pediatria do Hospital Municipal Vila Santa Catarina, onde Elysa nasceu.
“Quando ela teve alta do hospital Santa Catarina, ela ficou uns dois, três meses tendo acompanhamento com pediatra de lá. Só que lá não é ambulatório, então no caso da Elysa, foi um caso à parte mesmo”, diz Carla. Hoje, o atendimento deve ser feito nas unidades próximas à residência da família, como funciona para qualquer criança. As demandas de Elysa, porém, pedem uma atenção especial.
“O ideal seria um acompanhamento multidisciplinar, com pediatra geral, médico de família, neurologista infantil, nutricionista, fisioterapeuta, fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional”, afirma dra. Luísa, que acompanhou a filha de Carla ao longo do seu primeiro ano. Segundo a médica, manter sempre a mesma equipe de atendimento facilita o olhar comparativo e a criação de vínculo.
Recentemente, Carla conseguiu uma nutricionista. “Ela me perguntou: o que é que você dá para sua filha? E eu falei: ‘leite’. Ela perguntou: ‘leite com quê?’, porque eu só dava leite para ela o dia inteiro. Leite puro. E ela disse: ‘não, Carla, sua filha já vai fazer dois anos e tem que comer como uma criança de dois anos’”. Só que eu não dava porque eu tinha medo. O que eu posso dar? O que eu não posso?”, conta. A falta de orientação adequada só agrava um quadro que já é muito delicado.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a desnutrição é a maior ameaça ao sistema de saúde público mundial. Além de ser um problema em si, a falta de segurança alimentar agrava outros quadros que poderiam ser fáceis de tratar, elevando o risco de uma simples diarreia, por exemplo.
Desnutrição é comorbidade grave em qualquer criança, levando a grande prejuízo no desenvolvimento psicomotor, maiores riscos infecciosos, e de comorbidades futuras, fora as anemias, alterações no desenvolvimento ósseo-muscular e outras comorbidades tão conhecidas diretamente relacionadas à desnutrição” (Dra. Luísa Braz)
O Papo de Mãe acredita na função social do jornalismo, na missão de informar para que a população saiba dos seus direitos e lute por eles. Mães e crianças como as citadas nesta reportagem merecem respeito e atenção para que tenham suas necessidades atendidas e seus direitos cumpridos. Para que não tenham que contar sempre com "sorte"ou "boa vontade".