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Livro aborda a relação da mulher com o próprio corpo e a conexão com a violência doméstica

“Como vou saber que virei mulher, Mãe?”, “Quando tomarem seu corpo com um só olhar”. Essas são algumas frases do romance Meu corpo ainda quente, de Sheyla Smanioto, pela Editora Nós

Lídice Leão* Publicado em 12/03/2021, às 00h00 - Atualizado às 13h44

"O que inspira o romance Meu corpo ainda quente é o fato de que a dúvida que o patriarcado coloca sobre as nossas capacidades não fica fora da gente"
"O que inspira o romance Meu corpo ainda quente é o fato de que a dúvida que o patriarcado coloca sobre as nossas capacidades não fica fora da gente"

É impossível não ser impactada pelas palavras que compõem a obra Meu corpo ainda quente, de Sheyla Smanioto, diante de um cenário tão sinistro para as mulheres em meio a pandemia. Segundo dados ainda de 2020, o Brasil registrou aumento de 2% nos feminicídios, apenas no primeiro semestre do ano. Ou seja: 648 mulheres foram mortas pelo fato de serem mulheres, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Livro “Meu corpo ainda quente”, de Sheila Smanioto, pela editora Nós
Livro “Meu corpo ainda quente”, de Sheila Smanioto, pela editora Nós

O crescimento da violência contra mulheres no período pandêmico não é fato apenas no Brasil. O problema, de dimensões mundiais, levou a diretora executiva da ONU Mulheres a classificar os abusos contra mulheres e meninas como uma pandemia invisível que se alastra pelos 90 países em confinamento. Phumzile Mlambo-Ngcuka, que também é vice-secretária geral das Nações Unidas, afirma que “À medida em que mais países relatam infecções e bloqueios, mais linhas de ajuda e abrigos para violência doméstica em todo o mundo estão relatando pedidos crescentes de apoio”.

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Os casos de violência contra a mulher durante o isolamento social endossam o que a sociedade já sabe: grande parte dos algozes dormem na mesma cama que suas vítimas. E agem como algozes porque acreditam ter o controle do corpo das esposas, companheiras, namoradas. “O que inspira o livro Meu corpo ainda quente é a parte dessa violência que veio morar dentro da gente, até o ponto de sentirmos que é isso que merecemos: dor e sofrimento”, explica a escritora Sheyla Smanioto, que pesquisa a conexão da mulher com o próprio corpo desde o mestrado, na Unicamp, e escreveu sobre o tema já no seu primeiro romance, Desesterro, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional e 3º lugar no Jabuti.

A escritora Sheila Smanioto
A escritora Sheila Smanioto

“O que inspira o romance Meu corpo ainda quente é o fato de que a dúvida que o patriarcado coloca sobre as nossas capacidades não fica fora da gente. Em certo momento eu me pergunto: como é que essa dúvida veio morar aqui, dentro de mim? Que porta eu deixei aberta para, de repente, estar inundada por essa lama e não só acreditar em tudo o que dizem para diminuir uma mulher, mas reafirmar isso no que penso sobre mim? Como foi que viramos cúmplices das violências com que nos atacam?” (SS)

A herança de culpa que a mulher carrega através de gerações – quantas vezes já não ouvimos que uma vítima de estupro estava alcoolizada, usava roupas curtas, não se comportou como uma mulher de respeito? – também está presente no livro, como no trecho:

“Agora você quer ser mulher, você sabe o que é ser mulher? É falar a verdade e sentir que está mentindo, é isso que você quer?” (SS)

A forma como a relação com as antepassadas constrói o corpo da mulher é abordada do início ao fim do romance, conforme explica a autora: “Nós, mulheres, aprendemos a culpar a mãe e a culpar o corpo que a mãe fez para a gente. Escrever Meu corpo ainda quente me fez entender que amar o meu próprio corpo é honrar minhas antepassadas, a vida que elas me deram, as possibilidades que construíram para mim, uma geração após a outra”.

Se existe o lado negativo dos crescentes números de violência doméstica nos últimos meses, não se pode negar também o aumento dos coletivos, entidades e associações de acolhimento dessas vítimas. O ideal é que movimentos como esses caminhem lado a lado com a consciência da mulher sobre o poder e o controle do próprio corpo. “Precisamos contar novas histórias, precisamos tomar os nossos corpos não só para fazermos o que nos ensinaram a fazer com eles – aprendemos com o patriarcado a lidar com os nossos corpos. Precisamos tomar nossos corpos para vivermos a vida deles, ouvir seus desejos. Foi assim que escrevi esse romance, buscando uma história que reconectasse uma mulher com seu corpo”, conclui Sheila Smanioto.

*Lídice Leão é jornalista e mestranda em psicologia social pela Universidade de São Paulo

Assista à entrevista com Luana Tolentino sobre a luta feminista, principalmente a das mulheres negras:

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