Papo de Mãe

Mãe e filho compartilham experiências sobre a Síndrome de Asperger. Conheça a história do Victor e da Selma

Roberta Manreza Publicado em 24/11/2016, às 00h00 - Atualizado em 06/12/2016, às 13h36

Imagem Mãe e filho compartilham experiências sobre a Síndrome de Asperger. Conheça a história do Victor e da Selma
24 de novembro de 2016


Por Clarissa Meyer   

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Victor Mendonça tem 19 anos, é estudante de jornalismo, escritor, palestrante e youtuber. Junto com sua mãe, a jornalista Selma Sueli Silva, eles comandam o canal do Youtube Mundo Asperger, onde abordam o universo do autismo de uma maneira leve, informal, mas com muito respeito.

A ideia do canal surgiu como uma forma de interagir com outras famílias e pessoas com autismo que se sentiam sozinhas. “Eu e minha mãe temos um combinado: nós já sofremos muito e não queremos que ninguém se sinta como a gente se sentiu um dia. Sofrer faz parte da vida, mas a partir do canal fazemos o possível para amenizar  o sofrimento dessas famílias”,  explica Victor.

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No canal “Mundo Asperger” do youtube

Além do canal no youtube, Victor e Selma, que são de Belo Horizonte (MG),  fazem palestras pelo Brasil. Victor também é autor de 2 livros: Outro Olhar – Reflexões de um Autista” e “Danielle Asperger”, lançado recentemente.

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Lançamento do segundo livro de Victor

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Jô Soares divulgando os livros de Victor

O diagnóstico de Asperger

Selma conta que Victor, desde muito bebê, apresentava um comportamento diferenciado. “Desde que o Victor nasceu, ele me chamou a atenção por algo diferente. Aos três meses, repetia tudo que fazíamos, como mandar beijos, abrindo a boquinha e não fazendo o biquinho, repetindo a palavra gol, quantas vezes a gente dissesse para ele… Ao mesmo tempo, percebia que ele não tinha atitudes de outros bebezinhos, como namorar o pezinho, pegar o biscoito… Ficava nervoso e esticava os bracinhos sem motivo aparente. Quando completou um ano, ficou muito estressado com o barulho feito pelas poucas pessoas que chamei para a festinha“.

O diagnóstico, porém, demorou e só veio aos 11 anos. A partir daí, sabendo para onde caminhar, Selma arregaçou as mangas e tratou de aprender tudo o que podia para ajudar ao filho. Deu certo. Apesar de muitas dificuldades, Victor cresceu e hoje está aí, pronto para o mundo: estudando, escrevendo, palestrando…

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“Quem conhece as regras do jogo tem mais chances de vencer no final. O diagnóstico não é um rótulo, mas um norte”.

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O que Selma mal podia esperar é que depois de tantos anos imersa na questão do autismo, ela mesma também seria diagnosticada como asperger.  “Eu não tive o luto do diagnóstico. Lembro bem que quando o psiquiatra me falou o que o Victor tinha, eu perguntei o que era e, após compreender, perguntei: ‘E então, qual o próximo passo?’ Hoje entendo que isso pode ter acontecido pelo fato de eu ser asperger também. Fui diagnosticada no início desse mês.”

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Selma descobriu recentemente que tem a Síndrome de Asperger assim como o filho

Conheça um pouco mais sobre o Victor e a Selma nesta entrevista exclusiva para o Portal Papo de Mãe/Estadão:

PAPO DE MÃE – Victor, como foi para você se descobrir asperger? Com que idade você teve seu diagnóstico e quem contou para você? Isto fez diferença na sua vida?

VICTOR – Eu descobri que era asperger aos 13 anos, dois anos depois de minha mãe ter recebido o meu diagnóstico. Como o asperger tem tendência a criar padrões, o psiquiatra tinha medo de eu passar a pesquisar muito sobre o transtorno e acreditar que tinha até mesmo características que não possuía já que, sendo uma síndrome, existe um conjunto de sintomas, mas ninguém apresenta todos. Apesar de reconhecer que em alguns casos é isso o que ocorre, não foi o que aconteceu comigo. Minha mãe me contou, ou melhor, deixou a notícia escapar, durante uma crise na qual ambos estávamos bastante nervosos. Para mim foi libertador. Eu sempre, desde muito pequeno, me percebi diferente e, com a chegada da adolescência e de toda aquela pressão pela socialização, passei a crer que isso era uma fragilidade minha, um defeito. Quando soube do diagnóstico, foi difícil aceitar algumas características, saber que eu tinha sim inabilidades sociais, mas foi libertador porque me liberou para ser eu mesmo nos pontos que me agradava e trabalhar as questões que me traziam sofrimento. É como digo no meu livro “Outro Olhar – Reflexões de Um Autista’: “Quem conhece as regras do jogo tem mais chances de vencer no final”. O diagnóstico não é um rótulo, mas um norte.

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PAPO DE MÃE – Selma, como foi a trajetória do Victor na escola? A socialização? Ele sofreu bullying? Quais foram as maiores dificuldades?

SELMA – No ensino infantil, ele era um pouco diferente dos colegas. Não se relacionava com ninguém especificamente, mas se dava bem com todos. Eram uns oito colegas. Nunca pedia para chamar ninguém para nossa casa e nem gostava de sair. No fundamental, é que os problemas de socialização começaram a surgir. Ele não entendia os comandos da professora, tinha dificuldades de entender os coleguinhas, estranhou a escola maior e se sentia muito cobrado. Então, começou a se estressar e ter crises em casa. Eram muitos os estímulos e ele não conseguia lidar com isso.

Ele já havia ficado dos seis aos oito com uma psicóloga que deu alta a ele me dizendo que eu tinha de me conformar em ter um filho diferente e muito inteligente. Só isso. Continuei a procura já que as crises se intensificaram até que, aos onze anos veio o diagnóstico.  

No período escolar, as maiores dificuldades ocorreram na transição do fundamental I para o II e do II para o Ensino Médio. Apesar de não ter o diagnóstico no fundamental I eu era bem presente na escola e atenta. Um dia fui conversar com a Supervisora e ela disse que o menino que eu descrevia em casa não tinha nada a ver com o da escola. Ele, na escola, não tinha um amigo predileto, mas se dava bem com todos sem se apegar a nenhum. Era considerado inteligente e tímido. Num período que ficou no integral, não comia quase nada. Começou a dar trabalho com a alimentação e sono.

No fundamental II, já com o diagnóstico, eu negociava passo a passo a inclusão escolar. Já contava com o psiquiatra e a psicóloga e tinha um coordenador como parceiro. Ainda assim, o Victor sofreu bullying de dois tipos. Num deles, os colegas o ignoravam fazendo-o se sentir invisível. O pior segundo ele. No outro, falavam mal dele pelas costas. Ele não me contou, pois achava que essa era uma falha, uma fraqueza dele. Foi um período de muitas dificuldades, inclusive com a manifestação de forte fobia social. Mas como eu o acompanhava de perto, as coisas foram se ajeitando até que o próprio Victor passou a lutar por seus direitos e a negociar a inclusão.

No Ensino Médio, não voltava para as aulas extras da tarde, duas vezes na semana, porque o turno regular da manhã, já o deixava exausto. Negociamos calendário de provas, de trabalho e tudo deu certo. Ele escolheu a melhor faculdade de jornalismo de BH e fez o vestibular tradicional inclusivo, em sala separada e com ledor. Foi aprovado e não quis fazer o Enem como era o desejo do Colégio. Ele disse que era uma sobrecarga imensa e desnecessária, já que ele já havia escolhido o caminho a seguir.

PAPO DE MÃE – Como surgiu a ideia do canal do youtube e de escrever os livros? Fale um pouco sobre cada livro.

VICTOR – Eu sempre achei que tinha muito mais a dizer ao mundo do que conseguia expressar. Isso me trazia uma angústia muito forte. Escrever, para mim, era mais fácil do que falar. Foi daí que surgiu o “Outro Olhar – Reflexões de um Autista”, que são crônicas nas quais eu mostro que mesmo as situações mais banais para as outras pessoas podem ser extremamente complexas para mim, porque o meu cérebro funciona de maneira diferente. 

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O ‘Danielle, Asperger’ eu escrevi durante uma noite insone, no meio de uma crise, aos 14 anos.  Eu estava no começo da adolescência, então somavam-se as angústias universais dessa fase da vida às angústias de quem está se descobrindo diferente. O livro me ajudou a dar voz a essas inquietações mentais que eu vivia na época. Apesar de a história ser ficcional, o sentimento era muito real. Isso mexeu bastante comigo, a ponto de eu jogar o livro fora e nunca mais querer vê-lo. Felizmente, minha mãe guardou e pudemos publicá-lo cinco anos depois. Eu quis fazer um livro leve e divertido como os que eu lia na época, mesmo com todo o drama. Depois de escrever esses dois livros e participar de diversos eventos como palestrante, eu me senti mais seguro para ter o canal do YouTube, onde falo, interajo com outras pessoas e comunico de outra forma que não é a escrita.

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A ideia do canal surgiu porque uma vez eu me senti (junto com minha mãe) muito sozinho, como se fosse o único autista do mundo e a minha família fosse a única com um parente autista do mundo.  Eu queria que ninguém mais se sentisse assim, e descobri um mundo fascinante e diverso, com autistas, familiares e profissionais da área. Eu e minha mãe temos um combinado: nós já sofremos muito e não queremos que ninguém se sinta como a gente se sentiu um dia. Sofrer faz a parte da vida, mas a partir do canal fazemos o possível para amenizar o sofrimento dessas famílias.

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No canal do youtube os vídeos são separados por temas

PAPO DE MÃE – Victor, como você definiria sua personalidade? Você tem consciência de que serve de inspiração para muita gente? O que acha disso?

VICTOR – Às vezes eu imagino que eu tenho várias personalidades distintas. As pessoas falam que eu sou muito calmo e transmito paz, mas eu sei que, muitas vezes, essa tranquilidade é apenas uma estratégia que encontrei para lidar com a minha ansiedade, que é imensa. Eu sinto que eu tenho uma essência muito tranquila de fato, mas existem coisas que tentam me tirar dessa essência (e às vezes até conseguem). Há momentos em que sou muito agressivo, como reação a alguma frustração externa. Nessa hora, respiro fundo e tento fazer o caminho de volta. Sou budista e medito, isso me ajuda muito a me reequilibrar. Eu sinto que eu tenho uma responsabilidade muito grande, porque as pessoas me dão esse retorno de que sou fonte de inspiração para elas. Algumas mães dizem que querem que os filhos sejam iguais a mim, e eu acredito que cada um possa encontrar o seu caminho para desenvolver o máximo do seu potencial. É uma sensação muito boa, me faz sentir que tenho uma missão e me motiva a ser cada dia melhor.

PAPO DE MÃE – Selma, quais foram as intervenções pelas quais o Victor passou e que você acha que fez mais diferença? E como mãe, como você lida com tudo isto?

SELMA – Eu não tive o luto do diagnóstico. Lembro bem que quando o psiquiatra me falou o que o Victor tinha, eu perguntei o que era e, após compreender, perguntei: ‘E então, qual o próximo passo?’ Hoje entendo que isso pode ter acontecido pelo fato de eu ser asperger também. Fui diagnosticada no início desse mês.

A partir daí, vieram a psicóloga cognitivo comportamental, a medicação e eu sempre mantive meu psicólogo. Eu o havia procurado para que ele me ensinasse a educar meu filho, já que tudo que eu havia aprendido não dava certo. Aliás, foi esse meu psicólogo que indicou o psiquiatra que diagnosticou o Victor.

Como as despesas são muitas, nenhum desses profissionais me falou da Terapia Ocupacional ou da Fonoaudióloga. Portanto, percebo que, embora o Victor seja um caso de sucesso, a parte sensório-motora não evoluiu tanto. E ele tem seletividade alimentar e dificuldades de deglutição também.

Estabeleci uma parceria com meu filho, dosando “braveza” e bom humor (palavras dele). Ele sempre foi muito amado mas nem por isso tinha pena da vida dele e nem da minha, embora não tenha sido fácil. Não tínhamos escolha, era a nossa vida, pessoal e intransferível, então a gente deveria lutar para se sentir feliz com ela. E conseguimos. Já nos sentimos muito sozinhos, mas sempre fortalecidos um pelo outro. Descobri que perfeição é isso! Meu filho perfeito é esse do qual tenho tanto orgulho e sinto tanta gratidão.

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PAPO DE MÃE – Receber um diagnóstico de autismo não é fácil para a maior parte das famílias. Que mensagem vocês deixariam para as pessoas, inclusive para aquelas que estão se descobrindo autistas mesmo depois de adultas?

VICTOR – O que eu gostaria que todos soubessem, inclusive o autista, que tudo bem ser diferente. Isso não nos torna melhor nem pior que ninguém. Somos gente, apenas. Não há uma guerra velada entre autistas e não autistas. Ninguém é obrigado a engolir ninguém. Ao contrário, é através dessas diferenças que podemos construir uma sociedade mais inclusiva e humanizada.

SELMA – Hoje, me sabendo autista, sei que ser autista é ter características diferentes. Ter um cérebro diferente. O sofrimento vem da ignorância e do desconhecimento disso. No meu caso, tive de me adaptar para atender a expectativa que tinham de mim. Foi como tomar sopa bem líquida em pires raso. Até me alimentei, mas foi tudo muito complicado. Intuitivamente, (ou pela auto-observação, não sei bem), queria que fosse diferente com o meu filho. Então, tratei de conhecê-lo, de debruçar sobre ele um olhar diferenciado para saber como poderia ser uma parceira proativa. Não é fácil, mas temos conseguido. Se os desafios são grandes, as vitórias são infinitamente maiores e vale muito a pena. Portanto, o que desejo é que a sociedade e as famílias entendam cada vez mais as peculiaridades desses autistas maravilhosos. Assim, todos vamos ganhar ao deixar para sociedade verdadeiros valores humanos. Um beijo imenso a todos vocês.

Fotos: Arquivo Pessoal

Site: http://mundoasperger.com.br

Conheça agora o canal Mundo Asperger! E assista também ao Papo de Mãe sobre Síndrome de Asperger.




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