Domingo no sítio: As sujeiras, os ralados, os cortes, os ardidos e depois aquele banho para livrar as crianças dos germes e das bactérias
Ana Paula Yazbek* Publicado em 21/04/2021, às 00h00 - Atualizado às 12h55
Domingo era dia de ir para o sítio. Íamos no nosso Maverick vinho. Meu pai dirigia, minha mãe ia ao lado, eu e meus irmãos disputávamos quem ia no meio. Não sei porquê gostávamos tanto de ir no meio. Era desconfortável, porque ao invés do pequeno degrau que os carros usualmente têm, neste havia um “morro”, ou a gente ficava de perna aberta ou com a perna elevada… Mas era legal ficar de pé e conseguir encostar a cabeça no teto do carro para cair sentada quando meu pai freava. Pois é, nos anos setenta não tinha esta história de cadeirinha, nem cinto de segurança.
Era legal chegar no sítio ao mesmo tempo que meus tios e primos. Meu pai ia buzinando pela estradinha, dava bom dia para tudo que encontrava no caminho: cavalos, porcos, galinhas… Ele dizia que entendiam o que ele falava. Quando o carro parava a gente descia correndo, as crianças se juntavam e sumiam. O combinado era que voltássemos na hora do churrasco.
Íamos ao pomar, comíamos amora, depois subíamos o morro e desaparecíamos. Fazíamos expedições por vários lugares, pegávamos gravetos para nos defender dos perigos. Meu irmão ia na frente e atrás dele uma escadinha de crianças. Tínhamos entre sete e três anos. Nenhum adulto nos acompanhava. Nosso objetivo era ficar muito tempo longe de suas vistas, brincávamos de crianças perdidas, encontrávamos gigantes, rolávamos nos gramados, fugíamos dos formigueiros e ficávamos conjecturando o que faríamos se um de nós fosse picado por cobra. Sempre achávamos que os adultos iriam ficar preocupados com a nossa demora.
Quando a barriga começava a roncar, voltávamos para o quiosque de sapê. Os adultos estavam por lá, ouvíamos suas risadas e sentíamos o cheirinho da carne assando. Às vezes, chegávamos sem fazer barulho, outras vezes na maior agitação. Nenhum adulto parecia preocupado com a gente. As mães preparavam os pratos para os filhos e a gente comia, já combinando o que faríamos depois do almoço.
Depois de muita carninha, salada, farofa e pão molhado no sanguinho (peço desculpas aos(às) vegetarianos(as)), a gente sumia de novo. A tarde era quando nos afastávamos mais, passávamos pelas barreiras de arame farpado (sempre alguém raspava as costas e isso era quase como um prêmio, principalmente se saísse um pouco de sangue). Vivíamos novas aventuras. Sempre alguém tinha uma história de medo para contar, mas juntos éramos muito corajosos, sabíamos como nos defender se alguma coisa perigosa acontecesse.
Muito tempo depois voltávamos para perto da casa e do sapê. Os adultos continuavam com suas risadas, despreocupados das crianças. Era hora do lanchinho, com algum resto do churrasco.
Começava a anoitecer, os lampiões eram acesos (nosso sítio não tinha luz elétrica), apareciam vagalumes e a gente corria atrás deles.
Os adultos começavam a arrumar as coisas para a volta. A gente torcia para que combinassem uma pizza no Gorducho quando chegássemos em São Paulo, mas nem sempre eles se animavam em estender o programa.
Voltávamos no Maverick carregado de milho e cana colhidos no sítio. O rádio passava o futebol, eu achava chato ouvir aqueles homens gritando, queria dormir. Às vezes, ia no banco da frente, aninhada no colo da minha mãe. Era uma delícia!
Quando chegávamos em casa, uma agitação começava a tomar conta de todos nós. Meus pais tinham que descarregar o carro, arrumar tudo e a gente precisava tomar banho. Mas não era o banho de todos os dias, que do alto de nossos cinco, seis e sete anos tomávamos sozinhos, era o banhão! Nossa mãe achava importante esfregar bem cada pedacinho de nosso corpo com bucha vegetal para limpar e higienizar cada ralado que tínhamos conseguido no dia. Lembro que minha cabeça balançava, enquanto ela esfregava suas unhas no coro cabeludo. Não dava para ter frescura, a gente podia gritar o que quisesse que ela, sem nenhum dó, deixava tudo bem limpinho.
Depois do banho a gente fugia, porque era hora de cortar as unhas. Ai, como doía! Nossa mãe fazia questão de deixá-las bem curtinhas (no sabugo), livre de germes e bactérias.
Hoje, olhando pelo retrovisor, vejo o quanto os adultos confiavam nas crianças. Os cuidados e as preocupações eram destinados aos germes e bactérias, que certamente trazíamos do sítio. Nunca imaginaria que o zelo de minha mãe em combater arduamente um possível inimigo invisível, estaria tão presente atualmente. Ardia, doía, mas ainda assim não trocaria essa experiência por nada. As sujeiras, os ralados, os cortes e os ardidos eram esquecidos ao longo da semana e estas aventuras são contadas até hoje para as crianças da família.
*Ana Paula Yazbek é pedagoga formada pela Faculdade de Educação da USP, com especialização em Educação de Crianças de zero a três anos pelo Instituto Singularidades; iniciou mestrado na FEUSP em 2018 e está pesquisando sobre o papel da educadora de bebês e crianças bem pequenas.
É sócia-diretora do espaço ekoa, escola que atende crianças de toda Educação Infantil (dos 0 aos 5 anos e onze meses). Além de acompanhar o trabalho das educadoras, atua em cursos de formação de professores desde 1995 e desde 2002 está voltada exclusivamente aos estudos desta faixa etária.