A fragilidade das joanas, marias e amélias no século XXI e a importância de combater o ciclo da violência contra a mulher
Anna Mehoudar e Elisabeth Antonelli* Publicado em 08/08/2016, às 00h00 - Atualizado em 15/01/2021, às 11h53
Neste domingo, 08 de agosto, no jornal O Estado de São Paulo, com o título “DPs não registram agressão à mulher; medida protetiva demora até 4 meses”, uma matéria dá notícia do pouco caso instalado quando da denúncia da mulher, vítima de violência doméstica, por parte de agentes e dispositivos sociais que supostamente deveriam escutá-la e protegê-la: delegacias da mulher, policiais militares, advogados e mesmo promotores e juízes.
Em muitos casos, há a inominável recusa na elaboração do boletim de ocorrência, deixando a vítima, além de abandonada à própria sorte, envergonhada, culpada e com medo!
A desvalorização da palavra da mulher face às suas tentativas de denúncias das agressões sofridas ganha cada vez mais destaque na mídia. Dez anos depois da conquista de um importante marco na luta das brasileiras na legislação e na tentativa de erradicação de violência doméstica, a criação da Lei 11.340/2006, chamada Maria da Penha, nome de uma cearense que ficou paraplégica após tentativas de assassinato do então marido, os índices da violência continuam subindo, e os serviços de atenção a homens autores de violência ainda são incipientes.
Joana, nossa personagem para exemplo, depois do casamento, passa a notar uma mudança no comportamento de Vagner: percebia que ele se alterava em diferentes ocasiões fazendo pequenas agressões verbais, às vezes gritando por tudo e por nada, tudo tinha que ser do jeito dele, tinha crises de ciúmes, fazia algumas exigências desmesuradas. A mãe bem que a tinha avisado que ele tinha um temperamento forte, era o caçula e coisa e tal, mas era ótima pessoa, em quem se podia confiar cegamente.
Nos dois primeiros anos, ela tentava contornar a situação procurando acalmá-lo. Joana apostava que com o tempo, ele voltaria a ser romântico e amoroso. E de fato, alguns dias após a crise de violência, ele se arrependia.
Na gestação e depois do nascimento do primeiro filho, as cenas de violência se tornaram mais agudas, ganhando novos contornos, ignorando a presença do filho. Porém, ela ainda acreditava que valia a pena tentar salvar o casamento, manter sua família recém construída! E após novo período de harmonia, tudo recomeçava. Com o passar do tempo, Joana começa a perceber que caíra numa armadilha. O que fazer?
O ciclo da violência se desenvolve e se instala de forma sorrateira. Na primeira fase a mulher nega a sua percepção. Afinal, ele trabalha tanto. Está tão cansado. Foram apenas algumas cervejas a mais. Ela desacredita aquilo que vê e sente.
No entanto, a violência tende a aumentar inaugurando a segunda fase do ciclo e rompendo as barreiras do suportável. A relação foge do controle e agressões agudas se sucedem, a mulher fica cada vez mais vulnerável, fragilizada e acuada. Instalada a tensão, o agressor sente que tem o domínio da situação e em geral faz um papel de bonzinho fora de casa, tem fama de bom pai e bom marido, ou, o que é bastante frequente, consegue isolar a família.
Então, já farta e desesperada, a mulher parte em busca de auxílio, recorrendo aos familiares e amigos, à delegacia, por vezes entrando com uma ação na justiça. Quando ela não recua, o que é frequente, começa então a terceira fase do ciclo da violência, a chamada ‘lua de mel” por alguns, na qual o agressor pede perdão de todas as maneiras possíveis, reconhece todos os erros, promete se regenerar, parar com os vícios, procurar trabalho, etc. Parece que a mulher encontra aquele por que um dia se apaixonou e perdoa, retira as queixas, dá nova chances, por vezes seguidas. Se ela cede, se ela perdoa, o ciclo da violência toma novo fôlego.
Mesmo quando a mulher toma coragem de fazer uma denúncia, 42,8% dos denunciados ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) não viram réus. Para a juíza Teresa Cristina Cabral citada na matéria, não há testemunhas na violência doméstica, é a palavra da vítima contra a do agressor. Mesmo sem a conclusão do inquérito, a juíza informa, a vítima pode ter uma medida protetiva, solicitada pela delegacia, pelo Ministério Público ou pela Defensoria. “Não significa que a vítima está sem proteção. Mas é grave o fato de o agressor não estar sendo responsabilizado criminalmente pelo que fez.”
Custa muito caro a essas mulheres não acreditarem na sua percepção. Mesmo porque todas as instâncias de denúncia parecem desconfiar de suas palavras. Depois de muito tempo, e muito sofrimento, Joana procura ajuda. Ela começa uma psicoterapia, procura a ajuda de um advogado, entra em contato com Centros de Referências da Mulher, não desiste de recuperar a sua dignidade.
*Anna Mehoudar e Elisabeth Antonelli são psicanalistas. Contato: [email protected] e [email protected]