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A praia, o sorvete, o filho e o desconforto

Uma crônica do psicanalista Paulo Bueno, um papo de pai, um papo sobre o filho

Paulo Bueno* Publicado em 03/03/2022, às 06h00

E quando nem tudo sai como planejado na praia? - Foto: Mariana Kotscho
E quando nem tudo sai como planejado na praia? - Foto: Mariana Kotscho

Pega sunga, protetor solar, boné, boia, bola, balde, pá, bota na sacola e vamos. Não quero perder o sol, bora! Não pode esquecer nem toalha, nem chinelo. Por que o Uber tá demorando tanto? Já acabou o café-da-manhã? Vá escovar os dentes! Qual livro será que eu levo? Tanto faz, não vou conseguir ler. Não!!! Você não pode levar o tablet!

“A aleia tá muito quente, vai queimar meu pé”. E o pé do pai não queima? Era o que faltava, além da tralha, ter que carregar a criança. O pai diz “não”. O filho chora. O pai se mantém inflexível. A criança, soluçando, grita “eu quelo voltar pala o Blasil”. Até ocorreu-me explicar que a Bahia fica dentro do Brasil, mas intui que a última coisa que o garoto precisava naquele momento era de uma aula de geografia. Água mole, pedra dura, tanto bate até que o pai pega a criança no colo – junto ao balde, à boia, à bola e ao livro, que não foi lido.

Na areia, a criança fazia castelos, enquanto o pai reclamava do desconforto da cadeira. Não é desconforrrtável, corrigiu-me, é desconforrrtosa papai. Desconfortosa pra você que não tem que carregar esse monte de coisas, pensei calado.

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Na beira-mar Pedro fez um amiguinho, brincaram juntos. Eu, possesso, mirava-os de uma distância calculada. Entre uma onda e outra apareceram algumas conchinhas. Sustentado na sabedoria de uma experiência de 5 anos de vida, o colega explicou que antes de devolver a concha ao mar era preciso fazer um desejo. Pedro fechou os olhos e atirou sua conchinha em direção ao mar enquanto sussurrava repetidamente: eu quelo um sorrrvete de chocolate, eu quelo um sorrrvete de chocolate. Não consegui escutar o desejo do outro garoto, mas suponho que era algo fora da praia e que a rainha do mar concedeu de pronto, pois logo em seguida sua mãe o levou.

“Vem papai, vem blincar comigo”. Me aproximo e, de cara fechada, observo. Ali na cambiante fronteira litoral, entre a areia e a água, Pedro hesitava. Aos poucos se acercou e sentiu o gelado das ondas que vinham tocar-lhe os pés, ele corria, lutava contra elas, queria provar que era mais ligeiro. Mas a maré sempre avança um pouco mais, e de repente: “zaz!”. Sem assumir derrota, sem levantar a bandeira branca, o garoto prosseguia provocando e desafiando o mar, ali da beirinha mesmo. Que nem quando a gente era criança e gritava “pégz, pégz” pra cachorro bravo preso atrás do portão. Na hora em que o cão se aproximava a gente fugia em segurança. O sorriso era maior que a boca. Imagina a alegria, após dois anos de reclusão em regime pandêmico semiaberto! Ao mesmo tempo dirigia insultos de menosprezo ao mar, agitava os bracinhos e pernas descoordenadamente, fazendo desenhos no ar e saltando sobre as ondas, que quebravam em seus pés, espirrando água.

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Na volta, paramos na sorveteria, talvez para fazermos as pazes – até mesmo porque chateação que a gente tem com filho sempre dura pouco. Ele escolheu de chocolate sem cobertura, nós fomos de coco espumante (desde o dia que descobriu que na Bahia tinha um sabor de sorvete com esse nome, toda vez que Pedro brinca com a espuma do shampoo durante o banho diz que está preparando um coco espumante). O sorvete foi devorado com a voracidade daquelas pessoas que, após um mês de privação em decorrência de uma dieta radical, se permitem um “dia do lixo”.

Na saída da sorveteria, ele me disse “papai, o desejo que eu fiz – da conchinha – deu cerrrto, eu tinha pedido sorrrvete de chocolate”. Arrumei a bola, o balde, a cadeira e a toalha molhada nos braços e, apesar da posição desconfortosa, peguei-o no colo e disse: “o meu também filho, meu desejo também se realizou”.

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Paulo Bueno

*Paulo Bueno: Pai do Pedro, de 5 anos. Psicanalista, mestre e doutor em Psicologia Social pela PUC-SP e docente do Instituto Gerar Psicanálise, Perinatalidade & Parentalidade.

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