Educação separada para crianças com e sem deficiência é retrocesso e prejudica todos os estudantes
Raphael Preto Pereira* Publicado em 24/08/2021, às 15h46
O jornalista Raphael Preto Pereira entende bem do que está falando neste artigo: sendo ele mesmo uma pessoa com deficiência, sabe exatamente a importância da inclusão. "Ficamos cada vez mais perto do modelo de inclusão fundamentalista e com diversofobia. Sem que ninguém precise dar um tiro".
Enquanto assistia ao "Fantástico" no último domingo notei como uma reportagem dava destaque para uma das mulheres que temia perder direitos com a volta dos fundamentalistas ao poder no Afeganistão. A mulher contava que se sentia privilegiada por ser pertencente à primeira geração de mulheres que puderam estudar livremente.
Deu-se também merecido destaque ao fato de que mulheres com acesso à educação ocupam espaços de poder. São juízas, professoras e cientistas que se beneficiaram de um crescente processo de inclusão.
Deu para notar na voz da menina um desencanto, uma descrença amparada no fato de que a resistência aos extremistas foi menor do que se esperava. Ou melhor, a resistência inexistiu.
Parte dessa expectativa se deve ao fato de que acreditaram que haveria quem comprasse a briga para garantir que as mulheres seguissem sendo tratadas com o mínimo de respeito. Essa ideia provavelmente nasceu da clareza de que a conquista das mulheres fazia um bem para toda a sociedade, e que por causa disso um eventual retrocesso seria combatido não apenas por quem foi beneficiado pela evolução, mas por todos aqueles que testemunharam os avanços.
O curto período entre os acontecimentos e essa análise não permite ainda ter a certeza de que a reação não virá. Mas, parece ser possível afirmar que ela não virá de forma rápida o que pode ferir mortalmente a sua eficácia.
É de fato complicado resistir ao Talibã. Armas, desprezo pelos direitos humanos e uma postura bélica e intolerante. Se contrapor a isso não significa apenas defender uma ideia, mas estar disposto a morrer por ela.
Quando a personagem da reportagem explicou que fazia parte da primeira geração de mulheres que tinham conquistado o direito de estudar em uma escola e com a garantia de que aprenderiam as mesmas coisas que os homens eu tive um encontro comigo mesmo sem precisar de um espelho.
Explico: eu sou branco, hétero e de classe média. Mas há uma característica física em mim que me torna o que se convencionou chamar de “minoria”: sou uma pessoa com deficiência. Essa particularidade, causada por um problema no parto, gerou uma falta de oxigenação no cérebro, o que por sua vez, limita um pouco minha mobilidade e me impede de escrever em letra cursiva.
Durante muito tempo muita gente acreditou que esse pequeno intercurso do destino com o qual eu acredito conviver muito bem, deveria impedir que eu frequentasse uma escola comum juntamente com alunos sem nenhuma deficiência.
Também faço parte da primeira geração de pessoas com deficiência que teve esse direito garantido, e isso certamente contribuiu para que eu escrevesse este texto. Também garantiu que eu pudesse formatar uma visão de mundo, com vistas arregaçadas para a diversidade e, principalmente, um olhar aguçado para o contraintuitivo e para a derrota do senso comum.
Há tempos o Brasil começou a construir uma legislação que garantia a presença de estudantes com deficiência em escolas regulares. Eu esperava que essa conquista fosse respeitada e comemorada por todos, não esperava que um ministro da educação começasse a dizer por aí, entre outros impropérios que crianças com deficiência “atrapalham” na sala de aula.
Esperava uma reação forte de todas as pessoas minimamente esclarecidas. Afinal, diferentemente do exército Talibã o ministro da educação não está armado.
Ficamos cada vez mais perto do modelo de inclusão fundamentalista e com diversofobia. Sem que ninguém precise dar um tiro.
*Raphael Preto Pereira é jornalista e colabora para o Papo de Mãe.