Entenda quais são os desafios do próximo governo para garantir a dignidade de indígenas e quilombolas
Vini Campos* Publicado em 30/06/2022, às 20h03
Nasci nos anos 80, numa grande cidade, e toda a minha relação com a cultura indígena, apesar de ter bisavó indígena, foi através das aulas de história que foram criadas por não indígenas e que reforçavam ideias que pouco tinham a ver com a realidade, e propagavam aquilo que o sistema queria.
Sim, sabemos que aulas de história, como qualquer outra aula, sempre vêm carregadas daquilo que o sistema dominante quer que a gente entenda como verdade sem questionar, se possível, outras possibilidades e realidades.
No atual governo, novamente a classe branca dominante, usou o que pôde para tentar desmerecer a luta dos povos indígenas e quilombolas. Na realidade, o atual governo trabalha diariamente para destruir qualquer narrativa que fuja àquela que eles consideram como "a verdade". Pretos, pardos, gays, mulheres, pobres, todos invisibilizados, mal tratados e expostos à violência através de discursos, atitudes e, inclusive, leis e políticas públicas.
Para falar sobre infâncias indígenas e quilombolas e tentar entender quais são os desafios do próximo governo para garantir dignidade aos pequenos, convidamos duas professoras. Givânia Maria da Silva, quilombola, Coordenadora de Educação do CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) e Joziléia Daniza Jagso Kaingang, antropóloga, Coordenadora Pedagógica da Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal de Santa Catarina.
Comecei o papo querendo entender o que era a Comunidade Quilombola, e Givânia me disse: "... É uma comunidade formada a partir do processo de resistência. As mulheres têm um significado muito forte. Muitos dos quilombos foram fundados por mulheres, são hoje ainda protagonizados por mulheres, mas as pessoas nos procuram sempre atrelados com a casa grande ou à toda marca e símbolo da escravidão, e pelo contrário, nós resistimos é pela liberdade".
Segundo estimativas do CONAQ, existem no Brasil 6.800 comunidades quilombolas e, claramente, cada uma delas tem suas particularidades e suas próprias necessidades. Inclusive, logo no começo da entrevista, fica claro que nosso país dá pouquíssima atenção a essa comunidade. "Nós nunca fizemos parte do censo" - me diz Givânia com pesar, afinal, se seu povo não aparece nos dados oficiais, como se pode pensar políticas públicas para atendê-los? Se não sabemos quantas crianças moram nessas comunidades, como pensar a educação, a alimentação e a saúde delas?
Jozi, a professora indígena, diz que sua comunidade tem alguns avanços já conquistados. Um deles é a educação indígena que é lei no nosso país. Ou seja, a possibilidade de que crianças indígenas sejam educadas em seus próprios territórios, com uma pedagogia que atenda suas necessidades. Geralmente isso acontece até o ensino fundamental, são poucas as comunidades que têm ensino médio próprio, e então esse adolescente tem que ir até uma cidade e receber educação numa escola não indígena. O grande problema ainda é o racismo e o preconceito que essas crianças sofrem. Ora, se nós não indígenas sofremos resistência nas escolas, imagina se você tem outra cor de pele, outra cultura e outros saberes.
Segundo Jozy, a violência contra a população indígena ainda é altíssima, em Santa Catarina, Estado onde ela mora, e em outras regiões do país. Ocorrem inclusive assassinatos de crianças e pessoas indígenas. E nós sabemos, aparece nas notícias, mas será que damos a esses atos cruéis a real importância que deveriam ter?
Outro problema citado por Jozy é a tentativa do governo de avaliar as crianças indígenas a partir do conhecimento da cultura não indígena. "As nossas crianças, lá no território dos Baniwa, na Cabeça do Cachorro, no Amazonas, com três ou quatro anos elas já sabem diferenciar uma infinidade de mandioca, mais de dez tipos de mandioca: a criança já rema canoa, já nada de um lado do igarapé pra outro, já vai pescar sozinha, já consegue entender o que pode comer na mata e o que não, pode, o que é veneno e o que é alimento e essa mesma criança já fala dois ou três idiomas…" - e ela conclui dizendo: “E aí, esse sistema educacional brasileiro, que colocar a gente pra fazer uma provinha, pra dizer ou medir se a gente sabe ou não das coisas…".
Fica claro que educação de qualidade é aquela que leva em conta os saberes e a cultura de cada criança. E isso não serve somente para as crianças indígenas e quilombolas. Imagine se mudamos de país, e de repente, numa escola na Polônia, nossos filhos são avaliados pelo nível de polonês que eles falam, ou sobre o conhecimento que têm sobre comida polaca - naturalmente nossos filhos seriam considerados "menos inteligentes" e não cumpririam com aquilo que a sociedade espera deles. É isso que crianças indígenas e quilombolas sofrem constantemente. São estrangeiros em nosso território e as escolas não estão preparadas para recebê-los.
Givânia ainda me conta que menos de 2% das comunidades quilombolas têm escolas próprias, porém isso não quer dizer que a educação seja quilombola, já que o projeto pedagógico é feito por professores não quilombolas, nem sempre com conhecimento dessas comunidades e das necessidades que essas crianças têm.
Pergunto o que deveríamos fazer para melhorar não só a educação das crianças indígenas e quilombolas, mas sim a alimentação, o sistema de saúde e tudo aquilo relacionado à vida das crianças, e minhas duas convidadas não exitam em defender a marcação de território. Segundo elas, é no território que as comunidades podem criar o espaço ideal para que as crianças cresçam livres. "Não se trata só da terra, se trata de todo o ambiente que se desenvolve ali, desde nossas relações e da nossa religiosidade, do Xamamismo indígena, desde um contexto que a gente está num lugar em que se respeita o que é humano e o que não é humano" - conclui Jozy.
Termino a conversa convencido de que a demarcação de território é fundamental para que as crianças indígenas e quilombolas se desenvolvam da melhor maneira possível. Territórios fortes, livres e que tenham autonomia na hora de educar suas crianças. Ninguém sabe melhor como educar suas crianças que o próprio povo. Se nós, na educação não indigena, procuramos projetos pedagógicos que entendam nossos filhos e que dê ferramentas para que eles cresçam e se desenvolvam, por que seria diferente quando falamos dos filhos dos outros?
O vídeo completo da nossa conversa está disponível a seguir e vale muito a pena escutar essas duas lutadoras falando sobre o futuro de suas comunidades. Tenho certeza que você vai sair transformado do papo e repensando muitas coisas. E para outubro, na hora de escolher nossos governantes, fique atento ao plano de governo, veja como aparece a causa indígena e quilombola. Somente políticas públicas potentes que lhes dê identidade e voz, poderão transformar a vida de seus filhos e a vida de todos nós.
*Vini Campos é ator, jornalista de formação e escritor de coração. Pai de três adolescentes, está cursando a pós-graduação "Pedagogias das Infâncias" na Universidade de Caxias do Sul e há três anos é colunista do Papo de Mãe. Esta coluna tem o apoio institucional do Instituto Mpumalanga
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