O caso do menino Henry Borel, de 4 anos, vítima de violência intrafamiliar retrata uma narrativa triste e violenta que ocorre todos os dias com muitas crianças no país
Thaissa Alvarenga* Publicado em 16/04/2021, às 00h00 - Atualizado às 17h40
Nesta semana, a reportagem do Jornal Folha de São Paulo sobre agressão contra crianças destacou os altos números sobre a violência, mostrando uma realidade extremamente preocupante. Nos últimos 10 anos, 2.083 crianças de até 4 anos morreram vítimas de agressão.
Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), com apoio da equipe da 360° CI, considerando crianças e adolescentes entre o nascimento e 19 anos, esse número chega a pelo menos 103.149. O levantamento feito em 2019 mostra que, todos os dias, foram notificados, em média, 233 agressões de diferentes tipos (física, psicológica e tortura) contra crianças e adolescentes.
Os dados extraídos pela Sociedade Brasileira de Pediatria do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan), mantido pelo Ministério da Saúde (MS) constataram que, em grande parte dessas situações, a violência ocorre no ambiente doméstico ou têm como autores pessoas do círculo familiar e de convivência das vítimas.
Na publicação feita na quarta-feira (14), no site da SBP, a presidente, Luciana Rodrigues Silva, destacou a exposição das crianças a uma maior incidência de violência doméstica e, consequentemente, aumento do número de casos letais diante da necessidade de distanciamento social, incluindo o fechamento de escolas, para conter a pandemia do novo coronavírus.
Ao acompanhar a história de Henry, é possível entender que o menino deu alguns sinais de que algo estava errado, teve mudanças de comportamento e até chegou a comentar com a babá sobre as agressões. Neste sentindo, escola também tem um papel fundamental, muitas vezes são os professores e profissionais da educação que notam comportamentos, hematomas ou outros sinais de violência e levam a denúncia ao conselho tutelar.
“No atual cenário, onde se tem discutido ‘homeschooling’ na Câmara do Deputados, o caso de Henry evidencia que a proteção e os cuidados com a criança e o adolescente não podem ficar restritos apenas aos pais. A participação do Estado é fundamental para garantir a proteção e os direitos, como assegura o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Constituição Brasileira, no artigo 227.”
Educar para prevenir é a principal discussão apontada pelo ‘Eu Me Projeto’, um projeto criado para que as crianças com e sem deficiência aprendam que seus corpos pertencem a elas e devem ser respeitados. Através de uma cartilha, as ensinam a reconhecer e se proteger de abusos e agressões com linguagem simples e ilustrações de fácil compreensão.
O Projeto incentiva que esse assunto seja discutido na sala de aula, desde a pré-escola. Assim, não só as famílias, mas também os educadores podem conversar e ensinar às crianças sobre o que fazer em caso de violência. A cartilha ensina a criança a conhecer o seu corpo, entender que ele deve ser cuidado e protegido, e que ninguém pode tocá-lo de uma forma que ela não goste, que a machuque ou a deixe com vergonha.
O Eu Me Protejo evidencia uma realidade ainda mais complexa, a de crianças com deficiência que acabam sendo vítimas ainda mais fáceis de agressão e abuso, como explica a jornalista e mestre em Estudos da Deficiência, Patricia Almeida, coautora do projeto Eu Me Protejo.
“Infelizmente a criança com deficiência é a vítima ideal. São muitas vulnerabilidades juntas – ninguém se preocupa em educá-la para se proteger contra a violência de uma maneira que ela consiga entender. Se ela não fala, não consegue relatar a agressão e quando consegue, as pessoas não acreditam porque não é uma “testemunha confiável”. Além do mais, como muitas vezes ela requer apoio de alguém para ir ao banheiro, por exemplo, é difícil perceber o que é cuidado e o que é abuso. Muitas vezes, ela nem sabe que está sendo abusada. É necessário ensinar que a violência está errada, muitas crianças são criadas nesse meio e acham que isso é normal, aí entra o papel fundamental da escola, explica Patricia.
A violência doméstica é a primeira maior causa de violência cometida contra crianças no Brasil, como explica a psicóloga Neusa Maria, fundadora do projeto Renascer contra a violência doméstica e coautora do Projeto Eu Me Protejo. E, se tratando de crianças com deficiência, ela se potencializa.
“Até mesmo pela invisibilidade social e marcadores que estigmatizam, elas estão sujeitas a todos os tipos de violência, física, sexual, psicológica, verbal, maus tratos como privação de higiene e de alimentação. Ser uma criança com deficiência intelectual já é um fator de risco para a violência doméstica e outras violências. Por isso, falar sobre violência e deficiência é muito importante, precisamos correlacionar, pensar de forma interseccional. Essa articulação precisa ser priorizada com urgência para que as crianças com deficiência, que sofrem cinco vezes mais violência, possam ter acesso aos seus direitos, esclarece Neusa.
A profissional reforça ainda que, o momento atual de pandemia é um fator de risco, e essas crianças ficam ainda mais vulneráveis. Junto com outros fatores, como as redes de apoio, creches, escolas e instituições fechadas, mais tempo dentro de casa, situações estressantes dos pais e cuidadores, conflitos familiares, questões psicológicas, dificuldade de lidar com as crianças e com outros afazeres, irritação, agressividade, ansiedade e falta de paciência inserem essa criança em um contexto de risco ainda maior, gerando uma explosão de violência, onde a condição da criança também é um limitador para que ela possa ter acesso à ajuda.
“Nós, a sociedade precisamos entender que essa é uma responsabilidade nossa, lutar por uma intervenção e integração dos serviços através de uma ação coletiva e efetiva, que seja articulada com todos os outros setores, assegurando a essas crianças proteção ao invés do contexto de agressão que elas estão inseridas. Por isso, precisamos que elas tenham acesso ao atendimento integral e os seus direitos fundamentais devem ser garantidos e instituídos, só assim, conseguiremos diminuir o ciclo de violência e não silenciar essas crianças”, reforça Neusa.
A psicóloga explica que os danos psicológicos são inúmeros e os principais sinais que a criança começa a dar são relacionados à mudança comportamental. Ela fica agressiva, nervosa, aumenta o tom de voz para falar, bate nos objetos, tende a ficar introspectiva, chora, não consegue dormir, tem medos frequentes, cai o rendimento na escola, perde ou aumenta o apetite e há casos em que a criança perde muito peso. A criança passa a ter um atraso no comportamento e começa a apresentar dificuldade para ações, atividades cotidianas e básicas.
Cabe a nós, adultos, a responsabilidade de falar com as crianças sobre o assunto e utilizar materiais didáticos, como a cartilha do Projeto Eu Me Protejo, levar e propor a discussão no ambiente escolar desde a pré-escola e, assim, ensinar a criança como se proteger e denunciar uma possível agressão ou abuso.
*Thaissa Alvarenga é fundadora da ONG Nosso Olhar