Roberta Manreza Publicado em 03/05/2016, às 00h00 - Atualizado às 08h55
POR SONIA RACY – Estadão
Estela Renner, diretora de ‘O Começo da Vida’, que estreia esta semana em SP, relata o que aprendeu, para fazer o documentário, ouvindo pais e especialistas
de nove países sobre a importância do amor
e do ambiente na primeira infância
Quando a cineasta Estela Renner recebeu o convite para dirigir um filme sobre a primeira infância não imaginava que passaria por tantas descobertas. Mas, à medida que sua pesquisa se desenvolvia, surpreendeu-se com a capacidade transformadora desse período das crianças. É esse retrato que ela aborda e expõe no documentário O Começo da Vida que estreia em São Paulo na quinta-feira.
Interessada em filmes engajados, a diretora de Muito Além do Peso saiu à cata de um recorte que se mostrasse capaz de “transformar a sociedade de alguma maneira”. E obteve êxito, como explica nesta entrevista à repórter Marilia Neustein. “O filme se tornou uma ferramenta de empoderamento para os pais. Porque mostra que a criança não precisa de brinquedos caros e nem de experiências caras. O que ela precisa é muito mais acessível”, afirma. E acrescenta: “Quem já viu uma criança fazer suas descobertas encontrou ali o extraordinário”. É o “estar presente, mesmo cansada. A criança não quer os pais perfeitos, quer que estejam presentes”.
O longa, que será exibido dia 26 no BID, em Washington, e dia 27 na ONU, em Nova York, procura demonstrar como algumas dessas questões são universais. De que forma? Estela viajou e entrevistou pessoas de nove países. Sua lista inclui gente comum e celebridades como Gisele Bündchen e o Nobel de Economia James Heckman. Dessa diversidade extraiu lições sobre o peso do amor, das relações em família. Deu-se conta de que não estava fazendo um filme “sobre primeira infância”, mas “sobre um projeto de humanidade, que é algo muito maior”. Abaixo, os melhores trechos da entrevista.
Quais motivações a levaram a fazer um filme sobre esse tema?
A minha produtora, a Maria Farinha Filmes, tem um interesse grande em produzir filmes engajados, que as pessoas lá na ponta estão desejando como informação. Isso aconteceu com o Criança, a Alma do Negócio, Muito Além do Peso, Território do Brincar, Tarja Branca.
E por que primeira infância?
A Fundação Maria Cecília Souto Vidigal nos procurou, porque queriam um filme focado nesse tema – e sem nenhum recorte específico. Quando o convite chegou, pensei no desafio e numa grande pesquisa. Então, me questionei qual seria o recorte adequado.
E o que descobriu com a sua pesquisa?
Durante todo o processo de leituras ou entrevistas com especialistas, uma constatação se repetia: que a maior revolução da neurociência, da pedagogia, da psiquiatria… é que a criança é formada não só a partir da sua carga genética, mas também a partir das relações que ela tem com o meio ambiente.
Concretamente, que ambiente e que interações são essas?
Foi justamente o que me perguntei. Ficou claro que, ao falar de ambiente e interações, todos esses especialistas estavam falando de amor. A relação que temos com nossos irmãos, avós, com as histórias que nos são contadas… isso é o que nos forma. Então, se temos tudo isso pra dar a uma criança… por que não estamos dando? Como podemos ser esse ambiente para as crianças? Fiz um filme inteiro sobre isso.
Você já explicou que o filme é dividido em atos.
Sim, no primeiro mostramos como o bebê não é um objeto de cuidados, mas uma pessoa potente, capaz. Isso deve ser levado muito a sério. Meu olhar em relação aos bebês mudou muito, porque eu tenho três filhos. Eu achava importante as crianças brincarem, mas não entendia o que existia dentro da brincadeira. O filme abre para essa importância dos relacionamentos: com a mãe, pai, a natureza, o brincar, a importância de ficar em silêncio. E o terceiro ato fala um pouco do que pode acontecer se a criança não tem isso.
E como foi essa parte?
Foi muito forte. No começo eu achava que estava fazendo um filme sobre primeira infância. Passando o tempo, descobri que estávamos falando sobre um projeto de humanidade. Algo bem maior do que nós.
Você entrevista, no filme, pessoas de diversos países, culturas e classes sociais. O que de universal você encontrou?
Fui buscar um recorte universal dos relacionamentos humanos. Estamos todos no mesmo barco e isso ficou muito claro. Falamos com um pai viúvo – que mora na maior favela da África –, com um chinês de classe média e com Gisele Bündchen. E fizemos a mesma pergunta: “O que você quer para seus filhos?” E eles querem a mesma coisa. A Gisele, por exemplo, diz que quer ouvi-los. E a mesma resposta tivemos de uma mãe que tem 13 filhos e vive num ambiente marcado pela violência. Ficou claro que o recorte do filme não é um recorte geográfico, e sim de sentimentos, de relacionamentos humanos, que nos unem.
Isso foi o mais revelador?
O que foi mais revelador foi entender, no decorrer do processo, que esse filme pode ter uma importância grande. Um dos desafios que me propus foi pegar o conhecimento de especialistas renomados que entrevistamos e juntá-lo com o cotidiano de todo mundo. E o filme se tornou uma ferramenta de empoderamento para os pais. Porque mostra que a criança não precisa de brinquedos caros e experiências caras. O que ela precisa é de algo muito mais acessível. Quem já viu uma criança fazer suas descobertas encontrou ali o extraordinário. É só você conseguir estar presente, mesmo cansada. A criança aceita seu cansaço. Ela não quer os pais perfeitos, mas presentes.
No trailer tem uma fala do prêmio Nobel James Heckman, sobre como o amor é uma parte importante para a economia e pouco valorizada na sociedade.
Acho que esse conceito ficou muito na casa do poeta viajante, do hippie… Mas se há uma coisa que faz o mundo girar é o amor. Só que não o colocamos no centro de tudo. Precisamos de um Nobel de Economia dizê-lo para acreditar. Mas, tudo bem. Ele está falando e espero que isso seja importante para líderes de empresas, políticos, para quem pode fazer mudanças em um escopo maior.
Você citou as crianças que não recebem amor nesse período da vida. O que descobriu?
Tem uma área grande, a da epigenética, que diz que toda criança nasce com o potencial de ser afetuosa, mas, se não foi amada pelos pais, quando for mãe ou pai também não vai saber amar o filho. Então, é intergeracional.
Cria-se uma linha sucessória de não amores?
Exatamente. Você perde a a capacidade de amar. É claro que somos resilientes, aprendemos, evoluímos, mas os períodos de formação são os que cimentam a nossa personalidade. Então é complexo. Mas o filme traz a mensagem de que se você melhora, tem a capacidade de transformar a humanidade. As crianças têm a potência de uma humanidade dentro delas, são os elementos que estão contando essa história, não a gente.
O que vemos no mundo são grandes demonstrações de radicalização e intolerância.
É verdade. Existem grupos de extremistas que premiam a morte. E, de repente, estamos falando de pais, crianças, e de todo mundo que quer dar para as crianças vontade de vida.
E como fazer isso?
Valorizando a ética, a moral, a beleza, cuidado, criatividade, liberdade, amor, afeto, chão, abraço… São esses os valores a construir… E a partir deles é que temos de construir uma sociedade. Não através de pessimismo, mas a partir de otimismo.
Já se discute a questão de gênero na infância também.
Sim. Acho que é na infância e nasce o machismo. Se você tem não uma licença parental para o homem, é como se essa presença não fosse importante para o bebê. O pai que cuida do filho e exerce a empatia no relacionamento com ele, com certeza será um homem diferente. Não é só o bebê que ganha, o pai também. A sociedade ganha. E o pai que participa valoriza muito mais a função materna também. Mostramos no filme que, muitas vezes, a função materna não precisa ser necessariamente exercida pela mãe. E muitas vezes não é.
Qual o próximo projeto?
Nenhum assunto me é tão visceral, depois desse, como as mudanças climáticas.
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