Promotora de Justiça do Enfrentamento à Violência Doméstica de São Paulo, Nathalie Kiste Malveiro, escreve sobre a pandemia de violência doméstica no país.
Nathalie Kiste Malveiro* Publicado em 31/12/2020, às 00h00 - Atualizado às 12h08
Começamos o ano de 2020 como começamos todos os outros. Com esperanças renovadas de 365 novos dias (366 porque este ano foi bissexto) de oportunidades. Mas logo no início, fomos atropelados pela pandemia de Covid-19. De uma hora para a outra, tivemos que entender o significado desta palavra. Se olharmos no dicionário, vamos ver que se trata do aumento incontrolável de uma doença infecciosa que se dissemina por vários lugares do mundo ao mesmo tempo.
E entendendo o conceito da palavra pandemia, me dei conta de que, antes desta, já sofríamos de uma outra. A pandemia de violência contra a mulher.
Assim como ocorre com a covid-19, a doença social da violência contra a mulher também atinge mulheres de todas as idades, raças, religiões, graus de instrução, níveis sociais e nacionalidades. E, como ocorre com a covid-19, apesar de todos os países sofrerem com ela, cada um sofre mais ou sofre menos, desenvolve tratamentos e vacinas e atende seus doentes de uma forma que as demandas e peculiaridades locais sejam acolhidas.
Infelizmente, no Brasil o enfrentamento desta grave situação não vem sendo bem feito. Apesar de termos uma das melhores legislações de gênero do mundo, a efetividade da Lei Maria da Penha ainda está distante de salvar nossas mulheres. Ainda temos juízes, promotores de justiça, advogados e defensores públicos que não entendem as especificidades das questões que envolvem a violência contra a mulher e julgam, não os agressores, mas as vítimas.
Mulheres não são ouvidas, são forçadas a se calarem e, quando insistem, são hostilizadas pelas instituições que deveriam ampará-las e seguimos na vergonhosa posição mundial do 5º país do mundo que mais mata mulheres. E além de mortas, são também abusadas dentro de casa, desde a tenra idade, são assediadas no trabalho, estupradas por amigos e conhecidos, quando não parentes e maridos, e são ofendidas em redes sociais quando “ousam” se manifestar.
Até quando teremos mais medo de que nossas filhas sejam assassinadas no interior de suas casas, por seus maridos e companheiros, do que sejam mortas no beco escuro por desconhecidos? Porque, na verdade, uma mulher corre mais risco de ser morta quando rompe um relacionamento abusivo, do que quando anda sozinha a noite na rua!
Chegamos ao final de 2020 com as perspectivas de uma vacina contra o coronavírus. Mas ainda distantes de uma vacina para erradicar a violência contra a mulher. Se a vacina não está próxima, que tal começarmos com os tratamentos? Educação de gênero nas escolas que ensinará que nossos meninos e meninas têm direitos iguais. Punição efetiva dos agressores e reeducação aos autores de violência para que estabeleçam relações pautadas pela igualdade e respeito pelas mulheres com redução da reincidência. Reciclagem dos operadores do direito para que entendam a dinâmica da violência de gênero e deem efetividade à Lei Maria da Penha.
Estamos num ponto em que não podermos mais retornar. E não queremos mais retornar! Queremos nosso direito ao trabalho devidamente remunerado, em igualdade ao dos homens; queremos o direito de usarmos os espaços públicos sem sermos assediadas; queremos o direito de estar na política; queremos o direito de escolher nossos parceiros e principalmente, queremos nosso direito à vida! À vida digna, segura e livre de violência!
*Nathalie Kiste Malveiro é Promotora de Justiça do Enfrentamento à Violência Doméstica de São Paulo, mãe, filha, irmã, amiga