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Alfabetização científica e pensamento crítico: entenda a importância disso

Damaris Gomes Maranhão, doutora em ciências da saúde,  nos dá dicas de como ensinar nossas crianças a desenvolverem o pensamento crítico, inclusive para que se tornem adultos que não aceitem fake news

Damaris Gomes Maranhão* Publicado em 26/01/2021, às 00h00 - Atualizado às 11h33

Damaris Gomes Maranhão desenhada por sua sobrinha-neta, Manuela Diniz Maranhão, de 10 anos
Damaris Gomes Maranhão desenhada por sua sobrinha-neta, Manuela Diniz Maranhão, de 10 anos

Algumas publicações, uma delas na Revista Lancet, tem alertado sobre a importância de que as populações de todos os países desenvolvam a capacidade de avaliar as informações sobre cuidados a saúde que lhes chegam pelas redes sociais, ou vias jornais ou programas de televisão, aquelas que circulam entre parentes, colegas de trabalho, vizinhos, amigos. A pandemia tem evidenciado um fenômeno que sempre existiu – as diferentes interpretações dos fatos ou de informações transmitidas entre gerações, entre grupos, mas que tem se agravado por meio das fake news, comprometendo tanto adesão às medidas preventivas efetivas como o cuidado de si, do outro e do ambiente.

Ao longo do desenvolvimento científico fomos ressignificando saberes que orientam os cuidados com as crianças, os modos de vida e comportamentos das pessoas. Um exemplo interessante é sobre a fecundação humana, cuja evolução do conhecimento está bem documentada no livro O ovário de Eva. No passado, alguns grupos pensavam que toda a humanidade esteve armazenada nos ovários de Eva. Podemos compreender essa interpretação, considerando as várias perspectivas, dependendo da religião, do conhecimento da fisiologia e genética, ou como uma trajetória sócio-histórica da ciência ou metáfora da evolução da espécie.

Muitas informações são transmitidas entre gerações mesmo após serem ressignificadas em alguns grupos que têm acesso a produção científica atualizada. Por exemplo, ainda ouvimos professores ou pais alertarem as crianças – não fique descalço nesse chão frio para não ficar resfriado– mesmo quando hoje, já sabemos, que o resfriado é causado pelo Rinovírus ou Adenovírus, e que a sola do pé é muito pequena para “resfriar” o corpo todo causando alterações respiratórias. As próprias palavras expressam sentidos que já foram ressignificados, por exemplo, o termo Resfriado ou Cold em inglês, tem origem em um conhecimento que já foi revisto pela ciência.

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Às vezes, as informações são construídas pela ciência em uma determinada época e depois são ressignificadas com outras pesquisas, mas nem todos se mantém atualizados, permanecendo como verdade no senso comum, reproduzidas pelos pais, tios, avós e mesmo por professores de ensino básico. Convido vocês a lerem a crônica do Dr Drauzio Varella Olhe esse vento nas costas, menino!.

Na realidade esse mito foi derivado tanto de uma observação das pessoas com reações alérgicas derivadas das mudanças bruscas de temperatura, como pela compreensão cientifica da época – de que as doenças eram causadas pelos miasmas – ou traduzindo – maus ares, que origina a palavra “malária”. Mas com a descoberta da microbiologia e da epidemiologia se evidenciou que não era o ar mau cheiroso que adoecia os que moravam em lugares sem saneamento básico ou com moradias precárias e aglomeradas.

Aliás, nem existia uma tecnologia para tratar a água e esgoto, nem o conhecimento que os dejetos e lixo eliminados no ambiente afetava a saúde, não pelo mau cheiro, mas porque favorecia a proliferação de bactérias e parasitas que somente foram visualizados depois que se inventou o microscópio. Às vezes, são achados casuais derivados de uma observação ou de uma busca intencional derivada de uma hipótese como a construída por John Snow que investigou a epidemia de cólera em Londres por meio do registro das mortes no mapa de Londres.

Mas o direito à saúde e educação desde o nascimento exige dos adultos a interpretação das informações à luz da ciência, à pesquisa e ao filtro de boas fontes, ao pensamento crítico e reflexivo para a elaboração de hipóteses e a busca de evidências que a certifique. Eu não preciso ser uma pesquisadora profissional para fazê-lo, mas devo saber pesquisar as informações que chegam via colegas de profissão ou mesmo aquelas veículos da imprensa, ou por mensagens de colegas na rede social. Não devemos temer as dúvidas, as perguntas de quem parece não ter compreendido a primeira explicação, mas partir dela e aprender a buscar as respostas. E devo ensinar essa atitude às crianças, assim como podemos pesquisar as fontes mais confiáveis.

Ao cuidar das crianças as educamos e vice versa, pois elas aprendem com a participação no próprio cuidado, desde o nascimento, com a atenção, observação, imitação, repetição, imaginação, pensamento e linguagens. Assim, os pais, demais familiares e professores, ao cuidar, promover interações e brincadeiras, observar e escutar as crianças, respondendo as suas perguntas ou ajudando-as a buscar as respostas, também aprendem com elas.

Espera-se que os professores saibam mais que a população em geral, pois como educadores profissionais têm obrigação de terem uma escuta ativa e reflexiva, mantendo se cientificamente atualizados ou, pesquisando em parceria com as crianças aquilo que ainda desconhecem. Pesquisa aqui é um termo amplo, no sentido que é usado em alguns programas de educação infantil, no sentido de investigar, compreender, ampliar o conhecimento sobre um fato, uma questão, aquilo que é de interesse da criança. Mas como ensinar isso às crianças se não soubermos fazê-lo com as próprias informações que nos chegam todos os dias, sobretudo nesse momento de pandemia, quando algumas autoridades também reiteram essa prática de veicular informação não embasada em ciência?

Durante essa pandemia, após várias reuniões online com participação de outros especialistas para atualizar e esclarecer as dúvidas dos professores de educação infantil da rede pública e privada, ficou evidente que os conhecimentos básicos sobre transmissibilidade de doenças que fundamentam inclusive os procedimentos que devem ser empregados regularmente antes, durante e após os cuidados regulares as crianças, como troca de fraldas, ambientes para sono, higiene de mãos, brinquedos e superfícies, ainda geram dúvidas. A fala de um professor durante uma coletiva na negociação de retorno das escolas no segundo semestre de 2020, repetida pelo prefeito Bruno Covas, nos levou a problematizá-la em um texto publicado no blog do Instituto Avisalá, como evidência de falta de informações básicas sobre saúde nas escolas. A fala justificava a não abertura das escolas, pois se os professores não conseguiam prevenir surtos de pediculose (piolho) na escola, como poderiam conter o Coronavírus?

O piolho, como cita a Fiocruz em sua publicação sobre os mitos sobre esse parasita, não voa e não pula, mas alguns professores contra-argumentaram que sim quando expliquei essa fato numa live. Sem conhecer as características da transmissão desse parasita, ou de outro agentes microbianos, assim como do novo vírus, as pessoas que são responsáveis pelos cuidados das crianças no contexto familiar ou na escola, não conseguem adotar medidas efetivas para sua proteção e das crianças pelas quais são responsáveis. E pela sua prática baseada apenas no senso comum, continuarão ensinando seus mitos às crianças.

Talvez por falhas de formação sobre as atitudes e procedimentos de cuidados com base nas ciências da saúde, os professores, gestores de escola e familiares podem ser influenciados pela propaganda enganosa de produtos como o tapete desinfetante mesmo sem evidencia científica. O mesmo se aplica ao uso de álcool sanitizante apenas por meio de aspersão sobre superfícies, sem ação mecânica, o que realmente é necessário para sua efetividade.

O círculo de Sinner é uma representação dos quatros aspectos que interagem para uma ação de limpeza e desinfecção efetiva: a ação mecânica (esfregar durante um tempo) deve ser conjugada com a ação química. As práticas de senso comum de emprego da água sanitária composta por hipoclorito de sódio desobedecem um princípio de reação química básica ao misturá-la com sabão, inativando sua ação desinfetante pela evaporação das moléculas de cloro que causam irritação da árvore respiratória, podendo resultar em sinais e sintomas de rinite, tosse, broncoespasmo – que inclusive pode ser interpretado como sintomas de Covid-19.

Assim, a formação dos professores relativa aos cuidados com a saúde das crianças ainda precisa ser aprofundada, ou mesmo abordada durante o curso de pedagogia pois nem todos incluem disciplinas sobre cuidados, saúde e bem estar, embora o cuidar seja interface do educar das crianças, sobretudo na educação infantil.

Como estimular as novas gerações a refletir criticamente sobre as informações que acessam ou recebem? Começa na infância, no contexto familiar. As crianças são observadoras e curiosas e fazem excelentes perguntas, revelando suas observações, pensamentos.

A construção de conhecimento científico pelas crianças

Clara, quatro anos, como todas as crianças, é observadora e curiosa. Seus pais, avós e tios sempre procuram responder as suas questões ou também instigá-la a pensar, pois partem do princípio que é capaz e potente, de acordo com seu desenvolvimento real e potencial.

Em fevereiro de 2020, início da pandemia, ouviu várias pessoas da família comentarem sobre o Coronavírus e perguntou ao pai o que era e de onde veio. Ele respondeu que era um vírus que causava uma doença nas pessoas. Ela perguntou como esse vírus surgiu. Ele respondeu que ele veio da China. Ela continuou perguntando. Como? – De avião. Então ela riu e questionou-o– Ah, pai, ele veio sentado no avião?

Antes da pandemia iniciada na China, ela já sabia que existia um país com esse nome, a partir de uma conversa durante o almoço. Os pais deixavam ela se alimentar conforme gostava e ao mesmo tempo, pelo próprio exemplo, a usar os talheres corretamente. As crianças desenvolvem habilidades e conhecimentos para a vida em sociedade, aprendendo as técnicas corporais, entre outras as usadas durante a alimentação. Explicaram à ela que havia várias formas de se alimentar, algumas pessoas comiam com as mãos sentadas no chão, outras com Hashi que ela já estava aprendendo a usar, outras como eles, sentados à mesa, usando talheres.

Mais tarde, a avó mostrou-lhe um globo terrestre para localizar o que seriam os lugares diferentes onde as pessoas tinham costumes diferentes. Ela perguntou sobre a região representada em vermelho e a avó explicou que esse lugar era a China. Algum tempo depois ela criou uma irmã imaginária, que morava na China e se chamava “ Yarda”   Outra ocasião usou o celular da mãe para imaginariamente conversar com Yarda. Ou seria Iarda?

Antes da pandemia ela perguntou por que tinha que lavar as mãos antes de comer, e como a avó não queria empregar a expressão “porque precisa, ou porque está suja”, afinal a sujeira é relativa e nem sempre visível, mostrou-lhe uma animação do Youtube, dublada e publicada pela TV Saúde ParanáO espirro. A animação começa com micróbios no formato de pequenos bastões se multiplicando na orofaringe de um homem que espirra e contamina a mão com a qual logo depois abre a maçaneta da porta de um lugar onde está ocorrendo uma festa. Uma mulher ao chegar no local, ao abrir a maçaneta contamina a mão, depois as rosquinhas servidas numa bandeja e deixando micróbios em cada uma delas. Depois, ao lavar as mãos os micróbios escorrem através do ralo da pia, como se pulsassem ao ritmo de uma música. Na semana seguinte Clara explica para outro parente que a questiona porque temos que lavar as mãos – ela fica quieta, parece pensar e finalmente diz: é para os micróbios irem embora igual as “as batidas do coração”, fazendo referência ao ritmo associado a eliminação dos micróbios no ralo da pia.

Outro dia ela quis saber mais sobre os micróbios e a avó explicou que havia alguns que nos ajudavam como aqueles que faziam o pão crescer, outros que transformavam o leite em queijo e iogurte, e outros que ao entrar no corpo das pessoas poderiam adoecê-las. A avó então assistiu com ela dois vídeos para crianças que estão publicados no site do Museu de Microbiologia do Instituto Butantã– aliás um bom lugar para se visitar com as crianças quando a pandemia regredir. Ela ficou entusiasmada, gostou muito de conhecer os Micróbios da floresta e os Micróbios até no mar – e pediu para revê-los várias vezes, como as crianças pedem para repetir a leitura ou a narrativa de uma história. Ela contou para a mãe que viu os Fitoplanctons que são os micróbios do mar, um termo que nem a avó lembrava mais o significado.

No final do ano ela ganhou da mãe uma pequena tela e tinta para desenhar. Ao terminar sua obra de arte ao lado da avó, essa perguntou se eram flores e ela respondeu que a maior cor de rosa sim, mas as outras eram “Os micróbios”. Assim, ela incorporou seu saber científico à sua expressão artística, da mesma forma que se encantou pela música que associou ao som das batidas do coração no vídeo O espirro. Afinal as artes e as ciências se complementam, conforme ela vivenciou com a mãe a exposição Experience – Leornardo da Vinci 500 anos de um gêniono Museu de Imagem e Som, em São Paulo.

Esse relato tem a intenção de incentivar todas as mães, pais, avós, tios, outras pessoas que leiam esse texto a aprenderem com as crianças, a incentivarem o pensamento crítico e reflexivo e pesquisarem juntos sobre temas desconhecidos ou complexos. Isso não significa deixar a imaginação, a arte, a música, a brincadeira e a criatividade de lado.

É preciso começar na família, na infância, e continuar na escola. Compete ao poder público uma educação de qualidade, com professores críticos e reflexivos, constantemente atualizados, sendo bons modelos e compartilhando com os familiares cuidados e educação das novas gerações.

*Damaris Gomes Maranhão é enfermeira especialista em Saúde Coletiva, doutora em Ciências da Saúde, professora do Instituto Vera Cruz e do Instituto Avisalá, consultora em saúde das creches Natura e Avon. Mãe do Bruno, da Melissa e avó da Clara.

Confira o vídeo da Dra. Fernanda Viana, do Saúde4kids, sobre covid-19 em crianças:

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