Homeschooling, ou ensino domiciliar, é aprovado na câmara dos deputados. Projeto de Lei seguirá agora para o senado. Educadores criticam a prática
Raquel Franzim* Publicado em 19/05/2022, às 08h27
“Acordar, tomar café da manhã, fazer atividade 1 com as crianças, fazer o almoço, almoçar, organizar estudo das crianças, arrumar cozinha, banho crianças, jantar, preparar aula, tomar banho e história para dormir.”
Você se reconhece nesta rotina citada acima? Se sim, pode ser que como eu e muitas mulheres, você seja mãe ou pai, avó, responsável por alguma criança. Mas, volte lá pra cima e leia novamente com atenção. Muito provavelmente seus olhos tenham passado rápido na “atividade 1” e “estudo com as crianças”. Afinal, os pequenos aprendem e estão em atividade o tempo todo, certo? Mas chamou sua atenção o “preparar a aula”? É isso mesmo que você acabou de ler: preparar a aula! A rotina acima, entre o acordar até o dormir, foi publicada em uma rede social por uma mãe adotante do ensino domiciliar ou homeschooling, como é conhecido.
Segundo as pouco mais de 30 mil famílias brasileiras adeptas dessa prática, trata-se de uma abordagem que favorece uma educação personalizada, de forma a potencializar o estilo de cada criança, sem que a mesma precise ir para a escola. Não é nenhuma novidade em países como Estados Unidos, Chile, mas tampouco ganhou atenção prioritária destas nações que de fato escolheram investir na educação escolar como o grande ativo de transformação de suas sociedades.
Como pedagoga e mãe, não tenho dúvidas do quanto as crianças e adolescentes aprendem em qualquer lugar, sobretudo em suas casas (lembrando apenas que tem um monte de criança que não tem aquilo que se entende por casa no Brasil). Não restam dúvidas também de que famílias, assim, bem no plural, de todas as formas, corpos, credos e cores, são estruturantes nessa fase da vida que se chama infância, dos zero aos dezoito. Por isso, estão de parabéns as famílias que querem e participam dos processos de ensino e aprendizagem de seus filhos.
Causa estranhamento, contudo, que essa participação de alguns pais esteja competindo com a escola, aliás, a ponto de substituir o direito da criança e do adolescente à educação escolar pelo ensino domiciliar. Direito à educação, a propósito, que no Brasil foi conquistado muito recentemente, de 1988 para cá e ratificado no ECA, o estatuto da criança e do adolescente que poucos conhecem sua importância ao declarar as pessoas mais jovens como sujeitos que têm direitos, que possuem iniciativas e ideias sobre tudo o que lhes rodeia e atinge, que precisam de convivência comunitária, proteção contra violências e por aí vai. Afinal, criança também é gente, não é?
E é isso o que o Projeto de Lei aprovado no Congresso Nacional e que seguirá para o Senado pretende bagunçar mesmo com a contrariedade geral de inúmeros especialistas e organizações da educação: liberar pais e mães, certamente bem intencionados, a fazerem de suas casas uma sala de aula aos seus filhos, abrindo mão de uma instituição que até tem lá seus problemas, mas é, segundo diversos estudos nacionais e internacionais, comprovadamente o melhor caminho para o desenvolvimento integral da meninada, a preparação para o mundo em sociedade, a prevenção de uma série de violências (às quais estão expostos mesmo confinados em casa, por exemplo, e também no mundo digital) e quiçá, o progresso do país. Essa instituição poderosa chamada escola.
Fico imaginando um projeto de lei que autorizasse todos aqueles que se sentissem aptos a pilotar um avião que o fizessem. Ou então, uma bancada de parlamentares que lutasse pelo tratamento de doenças baseado na leitura de alguns textos ou pesquisas em sites da internet. Parece absurdo o que escrevo acima, mas é exatamente como a profissão de professoras e professores está sendo tratada no Brasil. Como algo que qualquer um pode fazer, bastando ter boas intenções.
No país que teve o maior tempo de fechamento de salas de aula durante a pandemia da Covid-19 - contribuindo com o pior cenário de evasão escolar nos últimos 20 anos - a proposta de ensino domiciliar figura com uma prioridade inexplicável na casa do povo, também conhecida como Câmara dos Deputados. Parece também vergonhoso que a aprovação deste tipo de lei seja uma fixação de alguns deputados e deputadas ao mesmo tempo que ignoram as dificuldades e as perdas de aprendizagens ainda maiores das crianças brasileiras com a pandemia, sem apresentar nenhuma proposta para tanto.
Se em pouco mais de 2 anos de isolamento social crianças e adolescentes foram fortemente impactados em sua saúde mental em virtude da separação forçada dos seus espaços de socialização e convivência, o que dirá uma fase inteira da vida em que a única referência é sua própria família, por melhor que ela seja.
Verdade seja dita, o ensino domiciliar é uma dessas agendas que parece uma questão de liberdade de escolha mas no fundo deixa-se de cumprir as linhas redigidas no artigo 227 da Constituição Federal, que prevê a absoluta prioridade dos direitos de crianças e adolescentes. Sim, o direito de estar na escola é das crianças e não de seus pais.
O Brasil tem perdido muito tempo ao privilegiar o ensino domiciliar e não efetivamente as soluções aos problemas enfrentados por crianças e adolescentes brasileiros, ou 47,3 milhões de estudantes da educação básica. Perdem as crianças privadas de aprender na escola com com seus colegas e educadores, com um currículo intencional, alinhado à Base Nacional Comum Curricular; profissional - pensado, refletido e realizado por educadores - e diverso, como a sociedade brasileira é, mesmo com a intolerância de alguns. Perde assim toda a infância brasileira que tem seus problemas jogados para depois.
* Raquel Franzim é Diretora de Educação e Culturas Infantis do Instituto Alana