"Além da fome, é preciso dar atenção ao aumento de outras manifestações de insegurança alimentar "
Heloisa Oliveira* Publicado em 18/02/2022, às 06h00
Falar sobre este tema faz relembrar alguns fatos marcantes que ocorreram em nosso país nas últimas décadas. Para contextualizar, precisamos voltar um pouco, mais precisamente aos anos 1990.
Nesse período, o sociólogo Herbert de Souza, o “Betinho”, liderou a ação da cidadania contra a fome e a miséria pela vida, movimento pioneiro que envolveu a sociedade brasileira no enfrentamento da fome e da miséria e ficou conhecida como a “Campanha Contra a Fome”. Na época, foram criados inúmeros comitês municipais de enfrentamento à fome e à miséria, com a participação de funcionários públicos e cidadãos engajados com a causa. Betinho tinha o poder de sensibilizar e mobilizar as pessoas.
Nessa mesma época, a Pastoral da Criança, sob a liderança firme da Dra. Zilda Arns, trabalhava em todo o país orientando as famílias quanto à alimentação de seus filhos, com o objetivo de reduzir a desnutrição infantil das crianças nas famílias mais vulneráveis de norte a sul do Brasil.
Logo vieram as políticas de transferência de renda. O Programa Bolsa Família, criado em outubro de 2003 e depois extinto em 2021, teve um papel importante na redução da fome e da miséria no Brasil. Chegou a ser reconhecido internacionalmente como uma política eficiente para enfrentamento da pobreza.
Graças a esses movimentos e políticas, o Brasil saiu oficialmente do Mapa da Fome da ONU, em 2014, o que foi comemorado como um marco importante para a promoção do direito humano à alimentação adequada e saudável. Isso ocorreu após uma década do início das políticas de enfrentamento à fome e à miséria, que eram cerca de 20 programas que integravam o Programa Fome Zero.
De lá pra cá muita coisa mudou, inclusive a ONU mudou a metodologia de se apurar a fome. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), onde esse tema era um dos focos, encerrou seu período de acompanhamento. Foram criados os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), onde o enfrentamento da fome continuou sendo foco (ODS 2), sobre o que volto a falar mais adiante. A partir de março de 2020, o mundo começa a enfrentar a maior pandemia da nossa geração: a de Covid-19. Tudo isso se relaciona com o que estamos abordando e afeta, de forma mais acentuada, os mais vulneráveis.
Sabemos que, além da irreparável perda das vidas humanas causadas pela pandemia, os efeitos econômicos, com o aumento do desemprego e a interrupção de atividades informais de trabalho, associados ao fechamento das escolas onde muitas crianças têm sua principal refeição do dia, a pobreza, a fome, a subnutrição e as desigualdades aumentaram de forma assustadora.
Uma pesquisa divulgada como resultado de um Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede PENSSAN, com apoio do Instituto Ibirapitanga e parceria de ActionAid Brasil, FES-Brasil e Oxfam Brasil, mostra que voltamos a ter a fome como um problema estrutural. Eram 10,3 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave em 2018 e passou para 19,1 milhões em 2020. Foram 9 milhões de brasileiros a mais que, nesse período, passaram a ter no seu cotidiano, a experiência da fome, segundo aquela pesquisa.
Mas além da fome, é preciso dar atenção ao aumento de outras manifestações de insegurança alimentar que, embora não representem fome, podem comprometer o desenvolvimento e a saúde dos brasileiros.
No contexto internacional, para substituir os Objetivos do Milênio, em setembro de 2015, líderes mundiais e representantes da sociedade civil reuniram-se na Sede da ONU, em Nova Iorque, e aprovaram um plano de ação conhecido como Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, com a criação de 17 objetivos e 169 metas com os quais os países se comprometeram.
O Objetivo 2 (ODS 2) trata da fome e da agricultura sustentável, relacionando-se com o ODS 1 que trata da erradicação da pobreza. Mas traz também novas dimensões voltadas para a saúde, que é tratada no ODS 3. A meta 2.2 propõe que até 2030, todos os países devem acabar com todas as formas de desnutrição, incluindo atingir até 2025 as metas acordadas internacionalmente sobre desnutrição crônica e desnutrição em crianças menores de 5 anos de idade e atender as necessidades nutricionais dos adolescentes, mulheres grávidas e lactantes, e pessoas idosas.
Uma alimentação adequada e saudável desde a gestação e nos primeiros anos de vida é muito importante para a saúde do indivíduo e vai ajudar na prevenção de futuras doenças crônicas como o diabetes, a obesidade, a hipertensão e doenças cardiovasculares. Garantir esse direito a todos os brasileiros, principalmente aqueles que vivem em situação de vulnerabilidade social, é um grande desafio para o Brasil.
*Heloisa Oliveira é diretora-presidente do Instituto Opy de Saúde, entidade filantrópica que atua na saúde em áreas estratégicas como o cuidado nos primeiros 1000 dias de vida e prevenção de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNTs).