Aprenda a preparar uma quitanda incrível de origem africana, presente ainda em várias cidades mineiras
ARIELA DOCTORS* Publicado em 21/05/2022, às 07h00
Quando eu era criança, lembro da alegria que sentia quando minha mãe me convidava para ir à quitanda fazer compras. Morávamos no Rio de Janeiro, na rua Adalberto Aranha, no bairro da Tijuca. Na minha memória, pegávamos o carrinho de feira - que eu adorava pilotar - e saíamos pelas ruas arborizadas para comprar gostosuras.
Entrar na quitanda do bairro era um momento mágico. Aquelas montanhas de formas variadas e cores reluzentes das frutas, legumes e verduras frescas todas dispostas na minha altura! Era uma alegria poder escolher o que queríamos levar, colocar na balança e depois no carrinho. Além dos hortifruti, haviam sacas das mais variadas farinhas e polvilhos, sacos de biscoitos, bolos de milho, balas de mel, rapadura e outras delícias.
Para mim então, desde a infância, quitanda era um local onde íamos às compras. Qual foi minha surpresa quando estive em Minas Gerais pela primeira vez e fui convidada, nas várias fazendas que visitei, a comer uma quitanda no meio da tarde. Como assim, comer um lugar? Foi daí que entendi que nesses territórios, quitanda era uma referência aos quitutes, pequenos deleites comidos entre refeições.
Mais recentemente, em meio as minhas pesquisas sobre a formação da alimentação no Brasil, segui algumas pistas para elucidar os mistérios que envolviam a etimologia da palavra quitanda, ou melhor, kitanda.
A primeira pista foi que, antes de aportar no Brasil, Kitanda era o termo usado para denominar os mercados e as feiras da região centro-ocidental da África, especialmente entre os povos de origem quimbundo.
Eram mercados caracterizados pelo comércio de rua, realizado quase exclusivamente por mulheres, nos quais vendiam-se legumes, frutas, doces, peixe seco, carnes, comida pronta, além de tecidos, fumo, aguardente e outras miudezas. Esses mercados abasteciam de secos e molhados os aglomerados urbanos em várias cidades africanas. Ao atravessar o Atlântico, essa tecnologia de produção e venda de alimentos das mulheres africanas veio junto com elas e se estabeleceu por aqui de diversas formas: primeiro dentro das casas grandes e nas próprias senzalas e depois nos abastecimentos de vários tipos de quitandas nas grandes cidades.
Depois dos afazeres nas casas dos seus “senhores”, elas iam às cidades vender seus quitutes e ainda tinham de dar uma parte do que ganhavam para eles e outra para o governo, que cobrava impostos sobre as vendas e aproveitavam as quitandeiras para resolver a questão de abastecimento de alimentos nas cidades. Com o que conseguiam guardar, muitas vezes juntavam para comprar sua própria alforria, ou dos filhos e companheiros. Portanto, aqui no Brasil, nos séculos XVIII e XIX, o termo quitandeira/quituteira era usado para denominar as escravizadas negras que vendiam alimentos nas ruas levando cestos, gamelas e tabuleiros. Daí as expressões “escravas de ganho” ou “negras de tabuleiro”, depois da abolição.
A segunda pista foi que, na época em que fomos colonizados e mulheres negras eram escravizadas, existiam nas Casas Grandes as cozinhas escuras e as cozinhas claras. Cozinhas escuras eram uma referência à fuligem produzida pelos fogões à lenha, onde essas mulheres faziam as comidas do dia a dia e também os famosos doces de tacho. E as cozinhas claras eram onde as sinhás entravam para finalizar os “doces finos” da pastelaria portuguesa. Os tipos de alimentos feitos em cada uma delas se tornaram cultura. Culturas, sabores e saberes diferentes, que receberam o mesmo nome genérico de QUITANDAS, mas que carregam diferentes histórias, diferentes geografias e repertórios.
Durante o século XIX, as negras de tabuleiro eram uma categoria social ainda presente em cidades como Salvador, Rio, Recife e São Paulo, mas, em Minas Gerais, a presença delas foi desaparecendo. Isso se explica porque, entre o século XVIII e XIX, aconteceu uma importante mudança social e econômica na região que foi o esgotamento do ciclo das minas. Essa mudança teve diferentes implicações, principalmente o revigoramento da produção rural. As pessoas passaram dos espaços abertos das minas aos espaços fechados das fazendas, e, com isso, muitas práticas que aconteciam nas minas, como as quitandas, desapareceram ou ganharam novo significado.
O termo quitanda passa a designar não mais o comércio ambulante de mulheres negras, mas uma prática de pastelaria caseira e fortes vínculos com o universo alimentar português, produzida, nesse caso, nas fazendas. As quitandas ali passaram a ser um conjunto de produtos que incluía biscoitos, broas, bolos e sequilhos, que eram servidos com o café e que caracteriza até hoje um tipo de comensalidade do interior rural. Com isso, a quitanda passa a ser uma prática gastronômica gerida por senhoras de engenho, e esse deslocamento dá origem a outras memórias, que já não têm a ver com África, mas com tradições portuguesas.
Desde então, se criou uma ideia equivocada no imaginário nacional, onde as quitandas eram uma prática portuguesa e que esse hábito de oferecer alimentos como pretexto de juntar as pessoas ao redor da mesa era uma noção completamente estranha aos negros e aos indígenas, que, na concepção eurocentrista, comiam apenas para se sustentar.
Independente da origem, do povo ou crença, sabemos que a comida tem esse poder de congregar, de reunir de forma prazerosa. Que tal convidar as crianças para preparar uma quitanda incrível de origem africana, presente ainda em várias cidades mineiras, contar essa história e ainda compartilhar em família?
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*Ariela Doctors é chef, comunicadora e mãe. Coordenadora Geral do Instituto Comida e Cultura
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