Especialistas dos direitos das mulheres falam ao Papo de Mãe sobre decisão do presidente de vetar projeto que garantiria distribuição gratuita de absorvente menstrual
Ana Beatriz Gonçalves* Publicado em 07/10/2021, às 15h15 - Atualizado às 19h23
A pobreza menstrual, termo que se refere à falta de acesso de meninas e mulheres a produtos de higiene pessoal durante o período da menstruação, é um grave problema de saúde pública. Uma pesquisa coordenada pela antropóloga Mirian Goldemberg e lançada pela marca Always em maio deste ano, mostrou que uma a cada quatro brasileiras já deixou de ir para a escola por não ter dinheiro para comprar absorvente.
Desde quando foi divulgado, o assunto ficou em alta e chegou ao Congresso. Em agosto, a Câmara dos Deputados aprovou o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, projeto que prevê a oferta gratuita de absorventes higiênicos femininos.
Mas nesta quinta-feira (7), o Diário Oficial da União publicou a decisão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que decidiu por vetar alguns artigos do projeto, entre eles, a distribuição gratuita de produtos higiênicos nas escolas públicas, e o fornecimento de absorventes para mulheres em situações de rua, presidiárias e mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa.
A única justificativa apresentada por Bolsonaro para não aprovar tais medidas, é que o projeto não "estabelecia fonte de custeio" para garanti-las. Isso gerou um incomodo profundo por grande parte da sociedade, principalmente de entidades que são a favor de combater a pobreza menstrual.
O Papo de Mãe ouviu especialistas jurídicos e também que atuam no campo político, para compreender o que esta decisão de fato representa para a sociedade como um todo – e não só para as mulheres.
Vale lembrar que o Congresso Nacional pode recorrer à decisão do presidente.
Menstruar com dignidade é um direito de todas e todos'',Yasmine McDougall Sterea, fundadora e CEO do Free Free
A criadora da plataforma de educação e impacto social de meninas e mulheres, Yasmine McDougall Sterea, lembra que atualmente cerca de 11, 3 milhões de mulheres sofrem com a pobreza menstrual no Brasil. "Isso significa que além de não ter dinheiro para comprar produtos básicos, falta acesso à água e saneamento básico, o que afeta diretamente no desenvolvimento escolar de meninas e, consequentemente, no desenvolvimento do país", pontua.
"Precisamos normalizar a educação sexual. Precisamos dar acesso a produtos básicos. Não podemos mais ter meninas com infecções por usarem filtro de papel, roupa velha, miolo de pão, jornal e sacolinha de mercado no lugar de absorvente. Isso é desumano e uma questão de saúde pública. Dignidade menstrual é um direito e não um privilégio", finaliza.
A consequência é o aumento da desigualdade de gênero, o que é sentido em todas as dimensões sociais", Clara Serva, líder da área de Empresas e Direitos Humanos de TozziniFreire Advogados.
A especialista na área jurídica de direitos das mulheres, também reafirma o ponto crucial do debate que diz respeito à dignidade. "É um direito fundamental e, no caso das mulheres, se relaciona profundamente com o acesso a itens básicos de higiene, como os absorventes. É uma triste realidade existirem meninas e mulheres que deixam de frequentar escolas, trabalho e outros espaços por não terem acesso a esses itens", comenta.
Ela também traz uma informação enriquecedora para o tema: a Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, da qual o Brasil assinou em 1981. "Nossa Constituição Federal tem vários dispositivos dedicados a esse assunto. A busca pela igualdade de gênero deve seguir e não retroceder. Hoje perdemos uma oportunidade de dar um passo importante no combate à pobreza menstrual", complementa.
Essa decisão representa uma não conexão da autoridade do país com a realidade de milhares de meninas e mulheres. Isso vai em desacordo com a meta da ODS 5 - que fala justamente sobre igualdade de gênero". Fabiana Dal'Mas é promotora de Justiça do MP-SP, membro do Ministério Público Democrático
Para Fabiana, que já representou o Brasil no Congresso Internacional de Direitos Humanos das Mulheres, a decisão tomada por Bolsonaro impacta diretamente milhares de vida, além de ir na contra mão do que a própria ONU e Unicef acreditam – o direito a produtos de higiene pessoal como direito humano.
"Justificar a falta de verba não procede. O Brasil é uma das economias mais importantes do mundo. Ao mesmo tempo, nos últimos 10 anos, caiu 11 posições no índice de igualdade de gênero. A falta de investimento tem acentuado essa desigualdade de gênero. Vetar esse tipo de projeto é se omitir em relação aos termos da Convenção da ONU".
A promotora também relembra que no dia 11 de dezembro do ano passado, o próprio Conselho Nacional de Direitos Humanos recomendou ao Congresso Nacional uma política nacional de superação da pobreza menstrual. "As mulheres estão sub-representadas na política. Isso reflete a falta de políticas públicas", aponta.
Esse veto é notadamente um ato que pode ser considerado um ato de misoginia. Dá a exata dimensão do quanto esse governo desconsidera as políticas para as mulheres, e desconsidera efetivamente alguns grupos de mulheres", comenta Dra Claduia Luna, Presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-SP.
Especializada nos direitos das mulheres, Claudia Luna acredita na "seletividade" do veto, isto é, a quem ele se destina; mulheres em situações de vulnerabilidade socioeconômica.
"É uma política pública tão necessária e tão simples, que poderia ter um impacto na política de saúde, pensando na redução dos casos de infecções no trato ginecológico das mulheres. Veja o problema de saúde, falta de acesso à educação, por vezes ausência e faltas no emprego" pontua.
*Ana Beatriz Gonçalves é repórter e jornalista do Papo de Mãe
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