Uma crônica do psicanalista Paulo Bueno, sobre leitura e contação
Paulo Bueno* Publicado em 08/06/2022, às 07h00
Uma coisa é ler, outra coisa é contar história para uma criança. Na leitura, a criançada fica pertinho do livro, na expectativa da próxima página, fascinada pelas cores e formas de cada ilustração. Quem lê muda a entonação da voz, estabelece algumas pausas, imprime ritmo e, de vez em quando, usa umas palavras difíceis. Já na contação, a tendência é facilitar o caminho. O destino de chegada é o mesmo, com a diferença de que o contador se antecipa e vai tirando as pedras da passagem.
Longos parágrafos se tornam verdadeiros obstáculos diante de uma plateia que
ainda usa fraldas. Por isso que bom contador condensa extensas orações em uma única
frase. Quando a criança cresce um pouco, a leitura se torna mais palatável, mas ainda
assim é bom intercalar com algumas pitadas de contação. Qual retina fatigada
esqueceria o repentino aparecimento de uma mesóclise no meio de uma fábula?
Não consigo compreender por que diabos a chapeuzinho ficou “angustiada”
diante da enorme boca do lobo. Não nego que seja angustiante estar prestes a ser
devorada, mas por que usar um substantivo tão abstrato? Como explicar para criança o
que significa angústia? É medo e ponto final.
E tem outra, acho despropositado descrever que o patinho feio ficou “atônito” ao
se descobrir cisne no reflexo do lago. Melhor seria dizer que a pequena ave ficou
“surpresa”. Ademais, não me parece apropriado chamá-lo de patinho feio em 2022.
“Patinho esteticamente desfavorecido” ou “pato com a autoestima profundamente
abalada pelos imperativos de uma sociedade que impõe padrões restritos de beleza”
soaria melhor.
Sugestão: assista ao Papo de Mãe sobre criatividade e leitura
Dia desses, contei algumas histórias para meus sobrinhos. Zaila gostou tanto que
tomou a palavra e pediu para compartilhar uma história que escutara em sua escola.
Explicou direitinho, desde o dia em que os três porquinho foram subitamente expulsos
de casa pela mãe – que claramente não estava afim de sustentar marmanjos – até a
chegada do lobo. Nesse ponto houve uma deliciosa confusão, pois ao invés de dizer que o lobo iria derrubar a casa para devorar o trio de suínos, ela disse que “o lobo foi
expelimentar as casas dos poquinhos”.
Desde esse dia não me sai da cabeça a imagem de um lobo bem trajado, com
gravata borboleta e sotaque francês. Pós-graduado em eólica, esse sommelier de
construções tem a nobre função de experimentar a resistência ao vento de cada uma das casas. Vejo a cena dos porquinhos recebendo o lobo com chá, café e cookies. A
expressão de pavor em seus rostos é nítida quando o sommelier assopra levemente o
cafezinho. Cada assoprada traz o risco de levar junto o barraco construído em condições precárias e sem alvará.
Penso também numa versão alternativa da história, mais realista. Pois é pouco
provável que esse cargo seja tão bem remunerado a ponto de atrair especialistas em
eólica com currículo internacional. Talvez o lobo não passe de um fiscal de edificações
da prefeitura, um burocrata de terno puído e mal-humorado. De brio inquebrantável,
jamais faria vistas grossas e cederia às pequenas corruptelas cotidianamente propostas
por porquinhos pouco afeitos à legislação. Por isso, ao experimentar as casinhas,
Por isso que, em detrimento da leitura, prefiro a contação. Se a leitura tem a
qualidade de conservar a fidelidade ao texto, a contação coloca na história a palavra que lá não estava, que não era pra estar, mas que de repente aparece. É justamente essa palavrinha intrometida, palavra de Zaila, que na viagem da história escrita nos leva a outras viagens.
*Paulo Bueno: Pai do Pedro, de 5 anos. Psicanalista, mestre e doutor em Psicologia Social pela PUC-SP e docente do Instituto Gerar Psicanálise, Perinatalidade & Parentalidade.